segunda-feira, 7 de julho de 2008

Alina e Pedro

Alina e Pedro. Os lábios dela em chamas. Os olhos dele transbordando em lágrimas. 60 centímetros de distância entre bocas, olhos, Pedro e Alina. Uma vida inteira vagando em um abismo de 60 centímetros. Pedro era um homem de olhos miúdos e barriga um pouco saliente. Quando conheceu Alina, os cabelos pretos retintos já estavam manchados de branco pelo tempo. Eram os olhos miúdos, o grisalho do cabelo, as falhas da barba, a gargalhada sarcástica, o bom humor e todas as horas vagas que Pedro lhe concedia em tardes secas e noites chuvosas, que deixou Alina paralisada durante o encontro inesperado dos ex-amantes. Era fim de tarde e o céu alaranjado de Brasília se exibia para os ambulantes, como uma mulher indecisa que, propositalmente, troca de roupa na frente do amado: primeiro, cobrindo-se com um véu azul. Depois, vestia-se de laranja e, por fim, de vermelho afogueado, o preferido dos homens. Assim como o céu da cidade, Alina despia-se na frente de Pedro, para que ele notasse suas curvas. Para que em sua memória, ficasse a lembrança do belo par de pernas, das sardinhas salpicadas nas costas.
Alina era o avesso de Pedro. Os olhos pareciam duas jabuticabas. Eram tão redondinhos, pretos, vivos. Naquele dia, quando Pedro e Alina se reencontraram pela primeira vez, após anos sem vinhos, queijos e amor no sofá, a agonia voltava a reinar entre eles. As mãos tremiam, as pernas bambeavam. O rosto de Pedro parecia, à primeira vista, o rosto de um homem ferido. Pareceu-me um soldado fracassado, desses que jamais receberam medalhas ou títulos. Pedro parecia faminto pelo colo da mulher. No momento em que foi pego de surpresa pela presença da amada, tentou esconder que os olhos de jabuticaba lhe causavam vasto sentimento de felicidade. Alegria maior ocorreu no instante em que lançou um olhar discreto nos dedos da mulher e percebeu que estavam livres de anéis que comprometessem sua liberdade . Sem hesitar, Pedro pensou que ainda era o homem preferido da moça.
Um sopro de vento frio assanhou as longas mexas do cabelo dourado de Alina. Os cabelos roçaram o rosto de Pedro. De mansinho, causaram-lhe cócegas. Por um instante, como que cedendo aos grandes olhos de jabuticaba de Alina, Pedro sorriu. Foi um sorriso amável, seguido de uma gargalhada suave e terna. Alina escabreou-se. Com força, segurou os cabelos revoltos que dançavam no ar. Os fios enrolavam-se, mais pareciam amantes disputando a atenção do homem amado.
- Desculpe – disse Alina ainda encabulada.
Pedro, ainda estático, não ouviu o tímido pedido de desculpas. Naquele momento, os olhos já percorriam a beleza lânguida da mulher. Estava tão magra que os joelhos sobressaltavam. Pedro não ligava. Na verdade, seus olhos brigavam contra a vontade de grudarem-se nos seios que se apresentavam firmes em sua frente. "Ainda estão belos", pensou Pedro que desejava se aproximar alguns passos a mais para sentir aqueles seios que mais pareciam dois soldados à postos. Assim, ele a envolveria amavelmente, protegendo os dois soldados do sol quente, de outros olhos famintos. Pedro olhava Alina com desejo e com a euforia de uma criança burguesa em dia de Natal. Enquanto pensava nos dois soldados à postos, prontos para um embate que ele desejava há anos, Pedro se lembrava da primeira vez em que fizeram amor. Os corpos, ainda que encabulados, confundiam-se entre si. Eram pernas e pêlos que se enrolavam, enquanto os olhos vivos de jabuticaba da menina juravam-lhe amor eterno. Mesmo em silêncio, ele sabia que era para sempre. Sabia que a partir daquele instante, enquanto a flor tão delicada, desabrochava, tinha a certeza de que aquele sentimento de agonia e frio na barriga voltaria toda vez que visse os grandes olhos da mulher.
Enquanto voltava a si. Apesar de tomado por uma surdez momentânea, Pedro percebeu que da boca de Alina saiam palavras desesperadas. O franzido da testa transparecia raiva e os olhos pareciam embevecidos de loucura.
- Estou indo embora... – falou Alina já com a voz cansada.
- Mas... porque? – disse Pedro.
- Acho que vai chover.
- Não, não vai. O céu está limpo.
- Pedro...Acho que vai chover e eu estou de saída.
- Tudo bem. – Disse Pedro já percebendo o desinteresse da mulher.
Ele virou-se e seguiu em passos lentos. Ela continuou ali, procurando uma forma de fazê-lo entender que a sua atitude não se tratava de rejeição, que, na verdade, ela queria aquele homem para sempre, assim como uma vez havia lido no conto Fomos Perfeitos, de Cléo Araújo.
- Eu quero este homem para sempre. Eu quero este homem para sempre. Eu quero... – Repetia Alina.
Pedro parou.
-Disse alguma coisa?
- Eu... Eu... Não! Nada. Eu não disse nada.
- Sei...Cuide-se, então. – Pedro saiu desapontado.
- Ei! Espera!
- O que?
- Canta!
- Cantar?
- É! Canta aquela música que eu gosto.
- Aquela? Tem certeza?
A música era trocando em miúdos, de Chico Buarque. Uma canção triste que fazia Alina chorar todas vez que a ouvia tocar no rádio. Antigamente, sua mãe cantarolava aquela música como alguém que ouve fielmente a um consolo. O pai havia ido embora. Simplesmente sumiu. Alina adorava a música e Chico Buarque tornara-se ,agora, o seu conselheiro.
Pedro buscou o violão no carro, sentou no degrau da escadaria da Igreja e começou a dedilhar.
- Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim. Não me valeu. Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim! O resto é seu...
Alina chorava copiosamente. Sentou-se junto ao rapaz e escondeu o rosto entre as mãos pequenas, deixando que as lágrimas escorressem entre os dedos, borrando a maquiagem, molhando o vestido.
Pedro evitou consolá-la. Na verdade, estava feliz. Alina chorava e no íntimo de seus soluços, assumia a saudade que sentia de Pedro.
- Trocando em miúdos, pode guardar, as sobras de tudo que chamam de lar. As sombras de tudo que fomos nós. As marcas de amor nos nossos lençóis. As nossas melhores lembranças.
Alina levantou-se do degrau. Limpou as lágrimas tão rispidamente que os dedos poderiam ter lhe rasgado as pálpebras. Encarou Pedro nos olhos e continuou:
- Aquela esperança de tudo se ajeitar. Pode esquecer. Aquela aliança, você pode empenhar. Ou derreter. Mas devo dizer que não vou lhe dar, o enorme prazer de me ver chorar. Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago. Meu peito tão dilacerado...
Pedro dedilhava as cordas de aço com a ferocidade de um leão devorando a presa. As pontas dos dedos sangravam, enquanto Alina continuava:
-Aliás, aceite uma ajuda do seu futuro amor...Pro aluguel. Devolva o Neruda que você me tomou...E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde. Eu levo a carteira de identidade. Uma saideira, muita saudade e a leve impressão de que já vou tarde.
Alina juntou as sandálias, prendeu os cabelos, olhou fundo dos olhos de Pedro e partiu. Pedro limpava o sangue dos dedos com um lenço branco que guardava no bolso. Levantou-se e correu atrás de Alina que, cambaleando, desfilava entre os carros apressados na rua. Enquanto Pedro corria e tentava alcançar Alina, bruscamente, um carro desgovernardo atravessou seu caminho. Ouviu-se um grito. Os pombos da praça voaram todos. Pedro encontrava-se, agora, no meio da rua. Alina estava morta, estirada em seu colo, com os olhos de jabuticaba cerrados. Apesar das buzinas estridentes dos veículos em fila, Pedro sentiu-se a sós com Alina. Naquele instante, 60 centímetros não era nada perto do vazio que os separavam.


por Tainá Falcão

Um comentário:

Eduardo Ferreira disse...

certamente não irei mais arriscar ler seus textos no trabalho.

uma excelente re-leitura de Trocando em Miúdos.

parabéns