sábado, 22 de novembro de 2008

O segredo dos Soares

O telefone tocou na casa de Marcos e Lúcia Soares. Casados há cinco anos e sem filhos, os Soares eram um casal como qualquer outro na grande São Paulo. Acordavam às 7h para trabalhar. Ela era secretária, ele bancário. Lúcia gostava de ir andando ao trabalho localizado há duas ruas de sua casa. Marcos insistia para lhe dar uma carona, Lúcia sempre amansava a voz para dizer: - Não precisa benzinho. Vou andando. Faz bem para o corpo. Afinal, tenho que estar a sua altura. O marido estufava o peito orgulhoso de si. Era quinze anos mais velho do que Lúcia, mas, garantia a si próprio que os outros não percebiam a diferença de idade.
Lúcia – disse o marido enquanto lhe dava um cutucão.
Hum... – respondeu Lúcia ainda sonolenta.
É que... Droga! Olha Lúcia, acorda. Precisamos conversar.
A esta hora, Marcos? – indagou a mulher irritada.
Sim, Lúcia! A esta hora! Eu não consigo dormir...
Ai amor, insônia de novo? Eu te faço um chá...
Não, Lúcia! Olha, Lucinha... Vem cá, senta aqui pertinho vai... Vamos conversar...
Lúcia – que já estava a caminho da cozinha – olhou para o marido com ar de aflição.
Marcos, estou ficando preocupada! É o papai? Fala Marcos... Aconteceu alguma coisa com o papai? Ai meu deus! Foi o papai! – gritava Lúcia enquanto os olhos marejavam pelo incerto.
Não, Lúcia. Não é nada disso... – aliviou o marido. Marcos levantou-se nervoso, colocou os óculos e encarou a mulher que sentada no canto da cama parecia indefesa.
Por acaso, você lembra da Vilma? - perguntou o marido a mulher, em tom desafiador.
Lúcia desviou o olhar. – Marcos, estou com sono. Não sei quem é Vilma. Não conheço ninguém com esse nome.
Espertinha – balbuciou o marido.
Desculpe? – perguntou Lúcia.
Espertinha, sim! Você sabe quem era no telefone, Maria Lúcia? Não tem idéia, não é? – disse o marido que segurava a mulher pelo braço.
Era o Paulo, Maria Lúcia.
Que Paulo? – indagou a mulher.
Que Paulo? Cara de pau. Qual o único Paulo que você conhece, mulher? O Paulo, meu cunhado, irmão da minha irmã Vilma.
Ora, meu amor. Mas você falava da Ana Vilma? A Aninha? Como eu poderia adivinhar que era da Aninha que estava falando.
Marcos andava rápido pelo quarto.
É claro que eu falava da Vilma, minha irmã.
Mas ela não é sua irmã de verdade, é irmã de criação... Você mesmo me contou que sua mãe a pegou para criar quando ela ainda era uma criança...
Não interessa Lúcia.
É, não interessa Marcos. Aliás, porque está me perguntando sobre a Ana? Vilma.
Ah! Faça-me o favor... Disse o rapaz em tom de deboche.
Eu sempre desconfiei – balbuciou.
Não estou entendendo - disse a mulher.
O negócio é o seguinte. Eu vi o jeito como...
Como o que, criatura?
O jeito como vocês se olham. Como se elogiam quando se encontram. Lúcia! Você não percebe? Todos já notaram. Eu me sinto humilhado. Você é mesmo uma sem-vergonha. O Paulo me ligou... Ele disse que achou um bilhete seu.
O bilhete, vagabunda! – Marcos levantou a mão esquerda ao alto para esbofetear Maria Lúcia. Ela ficou como estava. Com a cara a tapa. Como se lhe dissesse “vai em frente, covarde”.
No bilhete, Maria Lúcia relatava seu forte desejo de passear sob as curvas do corpo de Ana Vilma. Pedia-lhe – que pelo amor de Deus – fosse encontrá-la em horário de almoço, pois três dias sem tocá-la já lhe causava ânsia de vomito.
Lúcia se levantou. Encarou Paulo nos olhos. E soltou uma gargalhada prazerosa.
E você ainda ri? Sua descarada...
Não precisa fingir Marcos. Eu sei que você e o Paulo também se encontram na casa da Ana. Aliás, eu não. A torcida do flamengo inteirinha. – debochou Maria Lúcia enquanto ria.
Marcos começava a se preocupar. Pensava nos amigos do banco. E lembrou que, ultimamente, era boicotado não apenas do choppe depois do expediente, mas também, das partidas de futebol encabeçadas pelo chefe.
Marcos desabou-se em lágrimas. Lúcia que agora fumava um cigarro na janela, aproximou-se para lhe dar um abraço. O marido caiu no sono depois de um remédio que lhe acalmou os nervos. Lúcia escovou os dentes. Deitou na cama, sorriu. Olhou para Marcos que dormia ternamente. E pensou que precisava dormir para não se atrasar para o trabalho.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Marina morena, Marina mulher

Aquela noite, Marina chegou exausta do trabalho. Como de costume, deixou o leite ferver na panela sob o fogo baixo do fogão e despiu-se para o banho. Primeiro a meia-calça cor da pele, o vestido marrom de pano leve, os brincos e por fim a calcinha. Ainda com os cabelos preso no alto da cabeça, aproximou-se do espelho e percebeu –com certa tristeza – que por mais que se esforçasse, não conseguia se recordar como era o próprio rosto quando tinha quinze anos. Não se lembrava da textura da pele, do formato do nariz, do tamanho da boca.
O leite que fervia na cozinha já começava a transbordar pela panela, Marina correu para desligar o fogo. Em seguida, entrou no banho e ao fechar os olhos, procurou tatear o rosto como uma forma de lembrar-se de si mesma, da textura da pele, do formato do nariz, do tamanho da boca.
Ao sair do banheiro, ainda com os pés molhados deslizando no chão, Marina não relutou em olhar-se novamente no espelho e procurar em si algo que justificasse a solidão que sentia todas as noites. Enquanto tocava as rugas em volta dos olhos – e esticava-se por inteira, fazendo-se parecer as tias que de tão plastificadas pareciam sorrir a todo instante – as lágrimas escorriam no rosto e misturavam-se com os pingos que ainda restavam no corpo e pingavam dos cabelos. Marina chorava porque sempre se sentiu orgulhosa de estar a tanto tempo sozinha com o silêncio dos livros ou o barulho da televisão. E agora, Marina, aos 48 anos, sabia que não eram as rugas ou o tamanho pequeno dos seios as razões de sua solidão. Ela sabia que no fundo o motivo dos dias frios nada tinha a ver com estética. Não poderia se culpar pelo modo sério como se vestia, pela timidez no andar, pois aquilo nada tinha da Marina de 15 anos. Sabia que tudo isso era supérfluo, mutável e adaptável.
Por fora, Marina poderia mudar a qualquer hora, todos os dias. Cortar o cabelo, quem sabe. Engordar, emagrecer, usar salto-alto, vestido, decotes, plumas. Para ela, nada disso importava mais do que descobrir o porquê de sua solidão, dos dias frios, dos braços soltos em noites quentes. Será que tanto desconforto poderia ser justificado pela essência, por aquilo que definia Marina por dentro? Não era o sotaque ou o modo como gesticulava exageradamente, era o jeito tímido, o humor inconstante, a impaciência, ansiedade, a vontade de encontrar alguém melhor, sempre algum homem de costas largas e mãos fortes, aquele mesmo homem que seria alguém amável, tão gentil como seu pai, mais alto e menos sincero que ela mesma – pois, muitas vezes sua franqueza a incomodava.
Marina não entendia o porquê de estar sozinha há tanto tempo, aos domingos, apenas com os livros que herdara do pai. Chegou a imaginar seus dedos perdendo-se nos cabelos macios de um qualquer. Não fez isso por vontade de estar junto a alguém especial, fez por rebeldia, por não entender os dias frios sem abraço apertado.
Agora Marina esguicha-se na janela. Como de costume, procura sentir o vento acariciar-lhe o rosto e assanhar o cabelo como um homem de mãos firmes. O mesmo vento que lhe sobe na espinha, lhe dá calor, lhe faz chegar às pontas dos pés e sorrir. Um sorriso triste, velho de todos os dias, todas as noites. É um sorriso discreto, tímido, de quem espera sem ansiedade nem muita certeza o melhor acontecer no fim do romance que se está lendo. Ela vai para o quarto, apaga a luz e deita. Como de costume, escolhe apenas um dos lados da cama de casal para não se acostumar. No lado direito, o travesseiro repousa com o peso do braço da mulher.