sábado, 14 de julho de 2007

A espera

Entrou pela porta da frente. Sem muitos porquês tratou de acender todas as luzes da casa; lustres de plástico velho, velas e seus castiçais semi-usados. Os saltos finos das sandálias ameaçavam, com um rangido nervoso, o azulejo gasto da sala de estar. Tornara-se visível o fato de que esperava por um instante inesquecível nas próximas horas. Momentos aqueles que lhe causavam náuseas constantes e uma insuportável sensação de que seu coração sairia pela boca a qualquer instante. O mesmo coração que lhe batia desesperado no peito, como que para explicar o esplendor da ocasião.
O jantar estava era para dois. Junto ao ar de romantismo ultrapassado e forjado no ambiente, o silêncio inconveniente da espera. Pétalas de rosas vermelhas insinuavam a intenção do vinho chileno e a voz adorável de Marvin Gaye. Apreensiva, ela se olhava no espelho três ou quatro vezes para checar o caimento do vestido sob seu corpo lânguido. Era a segunda vez que se empestava de um perfume francês – um cheiro doce que lhe daria o cheiro antigo da avó - na tentativa ingênua de enfeitiçar o homem amado pelas narinas. Uma ousadia profunda, no entanto infantil. Bem sabia ela, que seu cheiro natural lembrava as crianças perfumadas e bem vestidas das missas aos domingos, um odor angelical que não lhe permitia desenrolar-se daquele ninho de lembranças dos tempos de menina. Detestava pensar em si mesma como uma criança de tranças embutidas e sapatos de verniz engraxados.
Os cabelos escovados lhe caiam nos ombros esquálidos. O hálito cheirava a gengibre e havia uma mancha azul no vestido branco pérola. Antes de aborrecer-se, pensou: - “Deve chegar logo, não acho que vá demorar”. O vestido lilás acentuara melhor com o verde cor de garrafa dos olhos.
Voltava a sapatear pelos cômodos. Um andar lento e, ao mesmo tempo, desesperado. Um ato medíocre. Ridícula tentativa de tornar-se visível ao silêncio. Tentava, absurdamente, mostrar a si própria que estava viva. Viva e apreensiva – era a primeira vez que admitia sua angustia sob a espera. Olha-se no espelho e aparenta estar despida. Frente a si mesma, enxerga apenas a vivacidade de seu olhar perdendo-se sob um pensamento voraz que lhe propõe que ele poderia estar jogado aos braços de uma, duas ou três amantes. Seria menos doloroso acreditar que o rapaz se esqueceu que hoje faria seis meses, desde seu primeiro encontro. Talvez fossem insinuações de sua mente sagaz ou, na verdade, fosse tudo verdade, de fato.
Agoniou-se ao ponto de lavar a nuca e os punhos com água fria. Sentia uma vertigem ameaçadora e um coração pálido e anestesiado pela dor adiantada da perda. Foram minutos persistentes e incansáveis. Sonolenta, acomodou-se como um feto órfão na poltrona dura e desconfortável. O vestido tornara-se amarrotado e não se ouvia mais de seu peito, gritos de desespero. Ouve-se um barulho discreto no hall do elevador. É quando ele, o homem que lhe trará em mãos a sua felicidade, surge de forma sublime, carregando consigo um rosto cansado.
Ela cheia de amor, transbordava em sorrisos. Ele, até mesmo exausto, amaria aquela mulher por inteira, desde seu cheiro de criança sagaz a seu vestido lilás, amarrotado sob um corpo desmilinguido.
por Tainá Falcão

domingo, 1 de julho de 2007

Encontros descartáveis

Certa vez ouvi alguém dizer que para deitar-se junto a alguém, deleitar-se no sono do outro, seria preciso muita cumplicidade, carinho mesmo.
Hoje quando peguei o vôo dormente de volta à cidade céu, sentou-se ao meu lado um senhor sem muito “Quê”. Não diria que me impressionou o bastante para dizê-lo interessante, pois, nem ao menos, lembro-me de seu nome.
Seus cabelos brancos não lhe negavam a idade. Com muito esforço me pareceu um jovem de espírito. Curiosamente, seus olhos azuis vasculhavam o livro que carregava em minhas mãos com a deficiente intenção de devorá-lo.
Sob uma tentativa de iniciar um diálogo permanente e enfadonho, perguntou-me se era nativa de Brasília.
Escapuliu-me um pensamento inconformado e contestador: - Brasiliense? . Não me refiro com desprezo aos candangos de Brasília, porém, aquela pergunta me despertou um sentimento de vasta solidão, a perda de minhas raízes. Como se em mim não existisse mais o cheiro do mar.
A melancolia que eu carregava no olhar, sob o julgo de um coração saudoso e entristecido pela partida, poderia me garantir um ar da capital. Todavia, indignei-me com tamanha audácia. A meu ver, os nordestinos carregam estampados no rosto, as raízes fugazes do sol a pino, de um verão constante, além da vivacidade de um olhar puro, sempre, perseverante.
Respondi-lhe com toda certeza – sou alagoana. Desfazendo o mal entendido.
Logo depois me caí num sono leve sob a cadeira desconfortável daquele avião dormente e como o vento roçando as flores em tempo de primavera, mechas assanhadas de meu cabelo deixaram-se cair, vagarosamente, sob os ombros daquele homem.
Quando retornei da penumbra de meus sonhos esquecidos, agora sem me lembrar da estupidez da pergunta daquele ao meu lado. Aquele que agora mostrava-se amavelmente perdido no aconchego de seus sonhos, visivelmente, carregados de paz. Recordei-me,então, da vez que uma cigana ensinava-me a chamar a atenção das pessoas pela força do olhar. Através desta força a cigana me disse que poderia transformar pedra em ouro. Nunca ousei usar desta espécie de Dom para dominar ninguém. Porem, agora me sentia no dever de perturbar o prazeroso aconchego do homem. Não por que guardo rancor, ou por ser orgulhosa. Apenas por estar confusa. Por lembrar de quando me disseram que para dormir com alguém seria necessário o mínimo de cumplicidade.
Até agora, não entendia que espécie de cumplicidade desenvolvera com aquele homem e seus sonhos adoráveis.
É hora do pouso. O senhor acorda e em seu berço de sonolência pede para esperarmos o restante das pessoas despacharem-se da nave. Disse-me que odiava esperar e, por conseqüência, deixou-me a esperar junto a ele, como se fossemos parentes ou amigos.
Já fora da aeronave, tentando apressar-me para fugir de qualquer expressão de amizade andei sob passos curtos e apressados. Ao chegar perto da esteira onde rodavam as malas, lembro-me bem daquele senhor de cabelos brancos perdendo-se entre outros milhares de senhores grisalhos e recordei-me da tristeza em meus olhos ao deixar o mar de minha cidade, do rancor em meu coração por enterrar minhas raízes vivas e da saudade que sentia, agora, pela ida vã daquele senhor que sob um gesto incompreensível, um tanto admirável, deleitou-se junto a mim e diante de sua face amável e seus sonhos adoráveis perdi-me num momento indecifrável de ternura.

por Tainá Falcão