domingo, 21 de abril de 2013

Uma noite


Silêncio absoluto.  Lá no fundo da sala escura, um relógio antigo ecoava o tic-tac da angustia. Um barulho pontual penetrava a casa quase muda. Os ponteiros tão exatos exigiam ordem, atenção à vida que corria depressa lá fora, aqui dentro na penumbra sala. Uma nuvem forasteira, carregada, passou devagar. Choveu. No canto da janela, um olhar distante. Espiava pela fresta os pingos deslizarem lentamente sobre o vidro, até respingarem sobre seus pés descalços. Era uma mulher. Os cabelos estavam soltos, caídos nos ombros esguios, a silhueta desenhada, um vestido amarrotado, um rosto triste, desatento, desnudo, limpo, livre. Os pés quase encharcados, mobilizados. Uma mão que se erguia com maestria, charme, leveza até os lábios finos, pequenos, lentos. Um de três, quatro, cinco cigarros gastos naquela noite. E o tic-tac do relógio sádico ressoava sem pudor até a sala escura. Tic-tac, tic-tac, tic-tac lhe dizia: seu tempo acabou, segue, abre a porta, corre até a rua. E vinha a chuva maldita lhe implorar: fica, o mundo é frio, podre, distante, hipócrita, desista. A chuva vai embora, ela pensa: está na hora! Vou seguir. O que se foi, não volta, está longe, no canto do mundo, no horizonte do mar, na beira do abismo, intocável, estilhaçado, sem conserto, no fundo da sala escura, no tic-tac do relógio que diz: vai, segue, larga tudo, deixa de manha. Pés secos, rosto molhado, em pranto, escapa até o centro da rua, onde há luz, movimento, música no bar ao lado, gente, cores, barulho. Lá de baixo, ainda enxerga a sala na penumbra, o tic-tac do relógio vai parando lentamente, até silenciar-se de vez. Um rosto desfigurado, um vulto, uma sombra se aproxima da janela, puxa as cortinas com rispidez. O fantasma volta. É uma mulher, lânguida, magra, cabelos soltos, joga as cinzas do cigarro ao vento. Ela grita: segue, vai embora, o tempo chegou. No centro da rua, cercada pelos holofotes, pela multidão, olhos vermelhos, caminhando sem destino, sem pressa, canta baixinho, pede proteção, coração destemido, pesado ainda, ouve a música tocar no bar ali perto e segue até o centro da terra, beira do abismo, horizonte do mar, perto de Deus, casa de oração, no colo do pai amoroso, na cama do antigo amor. Um lugar onde ela é livre, sóbria, pura, onde o tic-tac vira música e o tempo passa devagar, pede calma, paciência, um jeito manso para arrastar-se com a vida. Ela para no bar vizinho, aumenta o volume da música sem pedir permissão. Sorri, gargalha, chora como uma criança, sente-se liberta, pronta, inteira, cheia de si, viva, enfim.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Os lados de Yulia

(Árvore... árvore... árvore).


Era tão bonito o jeito como ela repetia esta palavra sem a menor pretensão de parecer coerente consigo mesma ou com os outros. Era mais bonito ainda o modo como ela tropeçava a língua no céu da boca ao pronunciar, com pouca intimidade, a letra "r".

Era descendente de russos. Interpretava algumas letras com demasiada intensidade, até certa rispidez. Yulia  herdara os cabelos alaranjados da avó materna, bochechas acentuadas, um nariz reto, longo e sem qualquer desvio - o que lhe rendia um ar de seriedade diante das sardas ostentadas em boa parte do rosto pálido. Tinha pernas femininas, torneadas pela dança. Era uma mulher longilínea, com o quadril estreito, discreto, assim como todas as mulheres da família.

O corpo de Yulia não era másculo, mas um tipo incomum entre as brasileiras. Era uma mulher pouco temperamental. Poucos sorrisos, poucos gestos, uma mulher fria - diriam alguns homens que tentaram se aproximar de Yulia. Mas, quase nenhum deles sabiam que a poesia era um costume e o refúgio de Yulia.

Ainda moça, escondia-se no fundo da casa para fumar e escrever. Eram tantos os rascunhos secretos que poderiam lhe render alguns livros, quem sabe duas, três edições.  Os escritos transpareciam, quase sempre, uma alegria profunda que Yulia sentia pela vida confrontando um eterno e profundo sentimento de tristeza. Injustiça! Yulia era sim uma mulher sensível. A tristeza profunda que carregava nos olhos caídos, nos ombros curvos, nas mãos trêmulas, revelava o lado sensível daquela mulher. Pouco sabia sobre ser amável, mas muito entendia de sentir o peso da alma dentro de si. Pois, nas cartas que escrevia para si mesma, deixava transparecer a insatisfação com aquela condição que ela própria se impusera.

Isolou-se do mundo para não ouvir o vento sussurrante, os rostos passageiros nas ruas, as palavras esquecidas tão facilmente. Preferia guardar as palavras na memória, registrá-las em uma espécie de relicário, para que a fraqueza dela não fosse vergonhosamente exposta em vida. Seria muito cruel. Muito cruel - assim pensava Yulia - até que sentiu a tristeza atingir o coração.

Foi em uma noite fria de agosto, Yulia tragava um cigarro lentamente soprando a fumaça contra a cortina que assanhava-se ao ser tocada pelo vento frio do jardim. Escrevia lentamente, poucas palavras - era necessário precisão para que saíssem verdadeiras. Foi quando sentiu levemente uma dor lhe apertar o peito. Aos poucos, percebeu que, na verdade, a dor que antes parecia lhe rasgar a pele, invadira a alma. Uma dor profunda, que penetrava lentamente o coração de Yulia.

Deixou que o cigarro escorregasse, queimando-lhe as pontas dos dedos. Tentou gritar, a dor calara a voz. Encostou-se nas paredes e sujou-as de sangue, mesmo com as mãos limpas. Descalça, correu até o jardim escuro, com pouca visão, enterrou as mãos na terra úmida e chorou.

De manhã, sentiu o sol nascendo em seu rosto, pouco enxergava, estava claro. Olhou em volta, muita gente conhecida. Parentes, amigos distantes, vizinhos, curiosos. Talvez, centenas de pessoas. Era uma festa? - pensou Yulia. Não, longe de ser.

Ainda sentada na grama úmida, Yulia reconheceu uma tia próxima. A pele clara da senhora avermelhou. Yulia só a via deste tom quando chorava, algo raro. O grupo de pessoas não notou a presença de Yulia. Descalça e com a roupa suja de lama, a mulher caminhou entre parentes, amigos distantes, vizinhos e curiosos. Demorou até conseguir defrontar-se com o caixão no centro da sala de estar. Esticou-se um pouco mais, três ou quatro passos para chegar até o caixão.

Olhou bem perto mas não conseguiu identificar quem estirava ali, moribundo, tornando-se assunto do lamento alheio. Um véu branco e bordado de renda cobria o rosto do falecido. Yulia puxou o véu com cuidado... paralisou o olhar. Reconheceu o falecido. Como não reconhecer? Se era ela própria - Yulia!

Ela parou diante da imagem de si mesma. Na multidão, procurou a tia próxima que havia reconhecido ao acordar. Depois de encontrá-la, chacoalhou-a com toda força. Yulia gritava e perguntava a tia próxima: - Não me reconhece? Não está me vendo, tia? Estou viva. Eu! Aqui, bem na sua frente.

A tia próxima de Yulia olhou friamente nos olhos da sobrinha, aproximou-se do rosto dela, beijou-lhe a face com ternura e disse: - Eu sinto muito. Seguiu adiante, caminhando lentamente.

Yulia andou sem destino, descalça, ainda suja de lama, andou, andou, andou até sentir-se exausta. Entre as árvores que cercavam a estrada da casa dela, Yulia adormeceu.  Estava intrigada com a ideia de estar morta, no momento da vida em que mais se sentia viva!

Na outra manhã, Yulia acordou com uma voz doce e distante. Abriu os olhos com esforço e reconheceu o som daquela voz - Mãe? Levantou-se ainda cansada. Olhou os pés que agora estavam limpos. Vestia uma calça jeans e uma blusa de malha colorida. Correu até o banheiro. Quase não se reconheceu diante do espelho. Era uma mulher nova, uma jovem, adolescente. Sem exitar, pela primeira vez, sorriu porque tinha vontade.

sábado, 25 de setembro de 2010

O sonho

Diferente da maioria das vezes, naquela noite, Luisa preferiu dormir com as janelas abertas, queria sentir o vento lhe afagar as pernas. O sopro da brisa que assanhava as cortinas, também folheava as cópias dos poemas que deixara pela metade e lhe acariciava as pernas, como as mãos de outra mulher. Luisa dormia um sono leve quando ouviu a porta do apartamento em que morava se abrir lentamente. Ainda de olhos fechados, esticou os braços para tentar alcançar o abajur. Não conseguiu. No escuro, ao levantar-se, de olhos fechados, sentiu a cabeça pesar. Sentada na beira da cama, Luisa balançou os pés em busca das sandálias, derrubou a garrafa de vinho vazia.

 Lentamente, caminhou até o andar de baixo e, ainda no escuro, diante do espelho, abafou o grito. Por alguns segundos, estranhou a própria imagem. Não eram apenas os cabelos tingidos de vermelho, era como se estivesse em frente a outra pessoa.  Ao acender as luzes, procurou, mas não viu ninguém. Enconstou os ouvidos e as mãos na porta de entrada do apartamento, nenhum suspiro.

Angustiada com a idéia de ter um estranho dentro de casa, abriu a porta, vasculhou o hall do elevador com os olhos, novamente, nenhum sinal. Luisa buscou um copo com água na cozinha e voltou para o quarto escuro e frio. Antes,  mais uma vez, diante do espelho gigante da sala de estar, parou e observou as manchas de vinho pelo corpo coberto apenas por uma blusa branca que vira o avô usar algumas vezes nos almoços de domingo. Estranhou, pois, não costumava guardar pertences de pessoas mortas. Luisa levantou a roupa até a cintura e assustou-se com as marcas vermelhas nas pernas. Era como se alguém houvesse lhe apertado com força. Sentou-se na borda do sofá, ainda com o copo nas mãos, e tentou se lembrar do que havia acontecido mais cedo. A cabeça doía muito, decidiu descansá-la no travesseiro.
No quarto, Luisa deitou na cama e caiu em um sono leve. Pouco tempo depois, ouviu o ranger da porta, novamente. Levantou-se e correu para sala, a procura do telefone. A porta estava entreaberta. Do lado de fora, um homem ainda jovem, com pouco mais de 30 anos, sério, alto e magro. Luisa aproximou-se, pela fresta, procurou os olhos do homem no escuro. Era difícil perceber os detalhes do rosto dele. Mesmo sem reconhecê-lo, Luisa não sentiu medo. Abriu um pouco mais a porta e descobriu que o estranho tinha olhos castanhos, quase pretos. Luisa sorriu. O homem também sorriu para Luisa. Abraçaram-se como se fossem íntimos. Repelida por um momento de lucidez, Luisa afastou-se. Pensou em chamar alguém da família. Desistiu.
Os olhos castanhos do homem aumentaram a dor de cabeça que sentia. Era insuportavel. Voltou até a porta, observou que ele havia sumido. Desesperou-se. Desceu as escadas correndo. No térreo do prédio, nua, coberta apenas por uma camisa velha do avô, Luisa chorou. Não sabia onde procurar o homem estranho. Sabia que era estranho, mas, sentia como se perdesse alguém próximo. Voltou ao quarto e enconstou a cabeça sofrida  no travesseiro. Caiu num sono leve. Sentiu as pernas serem acariciadas. Pensou na  brisa que fugia para dentro do quarto. Enganou-se. Virou-se para o outro lado da cama. Sorriu, reconheceu os olhos castanhos, quase pretos, do homem desconhecido. Beijaram-se com ardor, os dedos pesados do homem escalavam as longas pernas de Luisa. Subiram até a cabeça da menina e lhe agarraram os cabelos cacheados com força. Luisa pensou em gritar, mas, sorriu... sorriu e chorou. Ela e o homem desconhecido abraçavam-se como íntimos até adormecerem em um sono profundo.
Pela manhã, Luisa acordou com a cama forrada pelo sol quente que também aquecia os pés dela. Ainda de olhos fechados, virou-se. Ao lado, metada da cama desforrada. Correu para a sala, olhou-se no espelho. Perplexa com o que via, parou.  Diferente da noite anterior, os cabelos estavam pretos retintos, vestia uma camisola de seda longa e florida. Na cintura, nenhuma marca, nenhuma mancha de vinho. Soltou um grito agudo de dor, um grito profundo de quem recebe uma notícia trágica, a morte de um parente próximo ou o diagnóstico de uma doença sem cura. Empurrou o espelho que quebrou-se em vários pedaços no chão. Correu para a porta principal do apartamento.
Na esperança de encontrar o homem desconhecido, gritou por diferentes nomes. Lembrou dos olhos castanhos, quase pretos, sentiu a cabeça doer. Acalmou-se, buscou uma garrafa de vinho entre as bebidas que herdara dos pais, bebeu com voracidade. A bebida escorreu pelo corpo de Luisa, entre os seios presos a camisola de seda. No armário do banheiro, buscou os remédios que usava para dormir, engoliu todos de uma vez, escancarou as janelas, deitou-se na cama a espera do sono eterno.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Os óculos

Levantou-se da cama ainda sem abrir os olhos. Esticou o braço direito ao alcance dos óculos que descansavam em cima da pilha de livros que lhe serviam de mesa. Uma das lentes estava rachada. Na última madrugada, Anita pisoteou os óculos propositalmente depois que ainda bêbado do vinho do jantar, Pedro lhe confessou que dormira com a melhor amiga dela, Raquel, no Natal do último ano. Embora houvesse se deitado na mesma cama que Raquel, ainda que houvesse apenas deslizado os dedos por cima dos seios da moça ainda cobertos pela blusa e presos ao sutiã, sentira-se culpado. Foi um beijo, apenas um beijo que nem ao menos se lembrava do gosto.

Raquel fora o amor de Pedro durante a adolescência. Estudaram juntos até a quarta-série. Depois quando a mãe da menina mudou-se de São Paulo para trabalhar como funcionária pública em Brasília, nunca mais voltaram a se ver. Raquel raramente aparecia na cidade natal em época de férias. Neste dia, depois que Anita havia deixado a festa, ainda chateada por ter deixado cair vinho tinto no vestido branco, Raquel aproximou-se de Pedro. Aos sussurros bem próximos a boca do menino, Raquel confessou que estava a ponto de cometer uma loucura. Ele, já embevecido pela beleza de Raquel, beijou-lhe o pescoço e depois a boca. Desceu a mão que alisava os cabelos pelos seios da menina. Depois de permitir que Pedro lhe acariciasse os seios, ainda deitada no chão da cozinha, Raquel aproximou seu corpo ao do rapaz, forçando um choro de arrependimento que muito pouco aparentava verdadeiro. Pedro sorriu e levantou-se.

Passou o verão inteiro ouvindo ironias de Anita que já percebia o interesse do namorado pela amiga. Porém, nunca havia lhe passado pela cabeça confessar o que aconteceu naquela noite de Natal por temer que Anita fizesse uma loucura. Outra vez, Anita queimou os livros que Pedro mais gostava de uma só vez. Cem anos de solidão, Álbum de casamento, nem os poemas de Neruda lhe sobraram para contar história. No entanto, nada disso o fazia a amar menos, admira-la menos. Ao contrário, a cada pasmo de loucura, Pedro sentia-se orgulhoso, gostava de desafiá-la. No íntimo, era um homem frágil e por isso encontrava em Anita bravura infinita, sabia que poderia apoiar-se nela.

Depois que lhe contou a verdade sobre Raquel, Anita lhe estapeou a cara. Os óculos escorregaram do rosto e foram esmagados pelo salto da sandália de Anita. Sorria como se prendesse a vingança entre os lábios. No outro dia, depois que preparava o café com as lentes dos óculos quebradas, Anita tocou a campanhia. Ajoelhada, com as mãos agarradas aos joelhos de Pedro, Anita lhe implorava perdão. Chorava e lhe dizia com voz infantilizada que mudaria, seria uma mulher comportada. Pedro a olhava com desdém, tirou os óculos do rosto para não olhar aquela cena que lhe causava náuseas. Puxou Anita pelos braços e a colocou firme, em pé.

- Não dormi com Raquel. Mas gostaria. Gostaria de ter transado com ela como um louco naquela noite - disse Pedro ao chacoalhar Anita pelos braços.

Anita que chorava copiosamente como uma criança desnorteada lhe encarou nos olhos.

- Não me importa. Eu perdôo.

- Olha, quer saber? eu dormi com a Estela, aquela sua prima de Ribeirão. E sabe a Marcinha? Aquela que conheci na faculdade e disse que era filha de amigos do meu pai? Também trepamos. A Dora, sua prima, a Mariah, da aula de francês...

Anita parecia surda, lhe encarava no rosto e consentia, acenava com a cabeça como que lhe perdoasse os erros.

- Não quero ouvir, não me importa - dizia.

Desesperado com a submissão de Anita inventou as piores mentiras na tentativa de ver ressurgir a mulher que amava, a verdadeira Anita, forte e corajosa. Anita que lhe revirava as roupas do armário em busca de uma prova legítima contra traição. Anita que lhe virava a mesa de jantar, que desligava o celular para lhe deixar irritado, que soltava palavrões em frente aos avós dele. Mas também, Anita que lhe preparava o café de amanhã com pouco açúcar, que lhe presenteava com os melhores beijos, Anita que lhe dizia: está tudo bem, você vai conseguir. Pedro colocou os óculos e viu que Anita chorava. Era a primeira vez que via a mulher chorar, talvez tamanho fosse o espanto. Ajoelhou-se junto a mulher, no chão da sala de estar de seu apartamento. Anita logo dormiu envolvida nos braços de Pedro. Ele, cansado, abriu um livro de Roberto Freire. Entre as folhas, um papel e o número de Raquel. Na outra manhã, decidiu procurá-la.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Ao amor apenas

Era sábado. No fundo da casa, as crianças corriam e atravessavam o jardim para se refrescarem com os pingos de água que saiam turvos do jato mecânico para molhar as flores. Camila tinha as calças dobradas até um pouco abaixo dos joelhos. Os pés balançavam dentro da piscina e arremessavam com leveza alguns pingos para molhar o busto que já suava em bicas. Era aniversário da prima, Cristina. Do outro lado do jardim, uma mesa com três rapazes que tentavam impressionar Cristina com histórias fantasiosas sobre amor, intriga e sexo. Cristina sorria sem graça e desviava o olhar para o canto. Observava Pedro. Era introspectivo e, a primeira vista, inseguro. Mas tinha que haver algo de especial com o rapaz, algo invisível aos olhos, um perfume, talvez, o jeito como tragava o cigarro quase morto entre os dedos. Cristina o olhava com ternura, sorria invariavelmente para os outros meninos que tentavam impressionar, mas estava surda. Pedro nada lhe dizia. Nem se quer a olhava, tinha os olhos presos aos pés de Camila. Cristina não percebera. Não ouvia o barulho que faziam os meninos ao seu lado, as crianças que gritavam, as tias que gargalhavam estridentes. Cristina não ouvia nada alem da respiração de Pedro. Lentamente, sugava a fumaça do cigarro que prendia quase morto entre os dedos. Soltava com rapidez. Camila percebeu que Pedro olhava seus pés. Levantou-se da água, desabotoou a calça, tirou a blusa e pulou na piscina de biquíni. Foi até a outra borda, onde estava Cristina. Chegou perto, de mansinho, perguntou:
- O que está olhando, Cristina?
Cristina tratou de desviar o olhar. Apontou para a porta da casa e disse:
- Vamos, Camila. Ponha uma roupa e venha cantar os parabéns.
- Mas o que há de errado com o meu biquíni? Além do que, está calor. Quero ficar desse jeito.
- Não me aborreça, Camila. Hoje é meu aniversario.
- Não adiante, Cristina. Não vou trocar de roupa.
Enquanto as meninas discutiam se Camila deveria vestir-se, Pedro aproximou-se e disse:
- Deixe Camila ficar como quiser, Cristina, deixe.
A mãe de Cristina, já bêbada de wisky, dançava sozinha a música de Maria Betania que propunha “Eu quero ser possuída por você. Pelo seu corpo, pela sua proteção, pelo seu sangue. Me ama”!
Camila sacudiu a canga que lhe envolvia ao redor da cintura. Molhava-se apenas do suor que lhe escorria do rosto. Cristina, já tomada de raiva sentia-se inferior. Era mais bela que Camila, mas diante da ousadia de Camila que já rodeava no corpo as mãos volumosas de Pedro, sentia-se feia, inferior. Camila aproximou o rosto de Pedro, tocou-lhe a nuca com os lábios até que a respiração do rapaz fosse ouvida ofegante.
Era como se as crianças no jardim fossem invisíveis. O mundo era Maria Bethania a cantar: “Do teu corpo revelando o meu corpo. Como se o mundo fosse pela primeira vez. Você meu ponto de referência nesta cidade”. Cristina deixou que uma veia lhe escapulisse na testa. Era certo que estava nervosa. Ao sentir os dedos de Pedro pressionarem a curva da cintura, Camila gargalhou. Afastou-se do rapaz e encarou os olhos marejados da irmã mais velha.
- Não sejamos patéticos, vamos. – disse Camila a caminho da porta de casa.
Cristina deixou que uma lágrima lhe escorresse no rosto e secasse com o vento que anunciava a chegada de uma tempestade inesperada. Os poucos convidados que ainda restavam na festa, retiraram-se. Era apenas Cristina e Pedro. Camila entrou na casa. A música parou. Chovia forte neste momento. Cristina permaneceu ali mesmo onde estava quando via Pedro escorregar as mãos no corpo da irmã. A chuva lhe desmanchou o penteado e colou o largo vestido no corpo exuberante. Aquela cena cegou os olhos do amado. Pedro a olhava com a boca semi-aberta de desejo. Cristina gargalhou alto, assim como fazia Camila quando queria impressionar. Pedro aproximou-se e lhe pressionou os lábios com a boca entreaberta. Desabotoou o vestido e se amaram ali, no jardim purificado pela inocência das crianças que antes o habitavam. Camila assistia a cena pela fresta da janela do quarto. Chorava de raiva pois não amava Pedro, amava Cristina.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Olhos e mãos

A caminho do ponto de ônibus mais próximo, Ana apertava os passos. As pernas, de tão longas, quase enrroscavam-se uma na outra, fazendo um nó. O vento embaraçava o cabelo da menina com brutalidade. De modo que as mechas alvoroçadas lhe tapavam a visão. O trovão e as nuvens escuras anunciavam a chegada de uma tempestade.
Ana corria. A sacola de papel que guardava as laranjas rasgou. Ainda com os braços ocupados com outra bolsa que carregava os molhos de tomate dentro, a menina agachou-se e tateou o chão para tentar conter as laranjas que já rolavam entre os pés sujos do mendigo. Ana parou em frente ao homem baixo e sem dentes que completassem um sorriso de outdoor. Apanhou as laranjas e entregou ao mendigo.
As gotas de chuva agora já pingavam lentamente. Ana caminhou até a parada e encaixou-se entre aqueles que também esperavam com agonia a chegada do ônibus que lhes levariam ao conforto do lar. Do lado direito, o dono da barraca de ameixas tentava proteger as frutas da água cobrindo-as com o remendo de sacos plásticos. Ana aproveitou uma fresta no caixote para esquentar as mãos entre as frutas. No fundo da bandeija, sentiu a mais madura das ameixas. Achou que não deveria, de início, mas não resistiu em apertá-la até que o suco vermelho lhe escorresse entre os dedos. Deixou que um sorriso lhe escapulisse dos lábios. O corpo caiu levemente para trás, como se adormecesse. Sentiu a mão esquerda ser acariciada. Abriu os olhos. Era tímida e, por isso, ignorou o gesto de carinho. Ainda assim, não recolheu a mão, deixou-a solta, quase que oferecendo-a aos afagos do desconhecido.
O carinho na mão a fez lembrar um antigo caso de amor. Ligeiro, o homem que para Ana chamava-se Henrique mas que negava-lhe qualquer prova de identidade e referencia, lhe agradou apenas pelo modo como lhe conduzia as mãos. Sempre viu nobreza naquele gesto. O homem a conhecia apenas de tardes chuvosas como aquela, em um quarto abandonado no centro da cidade, onde as buzinas dos carros entoavam a sinfonia dos amores proibidos do meio-dia. Os dedos do amado desconhecido foram vistos muito antes dos olhos. Ana o descobriu quando jantava sozinha em um restaurante perto de casa. Sozinho também, o homem estava de costas. Bebericava um vinho de uma garrafa sem rótulo e escrevia pedaços de poesia no guardanapo. Ana esticava os olhos para alcançar o que diziam as letras em garrancho. Desistiu. No entanto, os olhos continuavam vidrados nos gestos das mãos do homem. No modo como carregava o copo até a boca, na maneira como posicionava a caneta em cima do guardanapo, como fazia sinais ao garçom sonolento.
Quando estavam na cama, depois do amor, costumavam brincar com as sombras dos dedos. Ana sorria como uma criança, gargalhava alto. O homem deitado, apenas olhava. Era raro vê-lo sorrindo. Por isso, Ana sempre viu tristeza nos poetas. Pensava que eles sabiam demais da vida e, assim, não sorriam das ilusões.
Outra ventania anunciou a chegada do sol. Ana entrou no ônibus. Olhou meio de lado para tentar encontrar as mãos que haviam lhe acariciado antes. Olhou nos olhos de todos que aguardavam na parada, um por um. Ninguém lhe deu atenção. Ana sentou-se na primeira cadeira da frente, o ônibus partiu com os olhos de Ana ainda abertos, revistavando a multidão.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O encontro dos corações livres

- Eu sinto que você me ama.


- Não tente falar de amor, Olga. - respondeu Mateus ainda com a boca marcada de vinho.


- O que foi que disse?


- Eu disse que você não deveria falar de amor.


Engatinhando, Olga aproximou-se do rapaz que esparramado na poltrona, no canto da sala do apartamento de um amigo próximo, tomava o vinho da garrafa. Olga parou, ainda com o mesmo olhar que lhe rendia um vinco entre as sobrancelhas. A expressão não poderia ser levada a sério quando se tinha os olhos repuxados como os de uma gueixa. Os olhos sorriam mesmo em momentos que exigiam a seriedade de um pai de família.


- Olga, a verdade é que te amo mas não tenho razões para discutir o meu sentimento com alguém que não me compreenderia. O amor não é você, não sou eu. O amor é o que está em nós, aquilo que me identifica a ti...



- É muito tempo para mim. Cansei... - disse a menina a dar com os ombros. Olga virou-lhe as costas e andou em direção ao espelho.

- De mim?


- Talvez.


- Você sempre cansa das pessoas.


- Daquelas que me dão tédio.

Nesse momento, Olga parecia assumir um outro corpo. Era como se nela existissem duas mulheres. Um metade era ousada como uma dançarina de boate. A outra, séria como uma freira casta. E era desse modo que se comportava sempre que a conversa assumia um tom apelativo, de lamento. Olga detestava lamento. Era prática.

- Agora você foi longe demais. Olha os lençóis daquela cama: testemunham o tédio, por acaso?


Olga não deu ouvidos ao rapaz. Se olhava no espelho ainda semi-nua. O corpo dela era miúdo mas nem por isso acanhado. Comportava-se como uma platéia sonolenta diante de um espetáculo longo demais. Sorriu de canto de boca e encostou-se na janela próxima ao espelho.


- A gente ainda vai se ver? - indagou Mateus que já cambaleava de bêbado.


- Acho que não - disse Olga que agora penetrava o olhar no casal do outro lado da rua.

Sentados em um banco cobertos pelos galhos da amendoeira que os protegiam dos últimos raios de sol naquela tarde de vento fresco, o casal trocava confidencias e semelhanças. Vez ou outra, a moça gargalhava e pendia o corpo para trás. O vento varria os fios do cabelo que cobriam o busto dela. Em instantes como esse, o rapaz aproveitava para aproximar-se um palmo do corpo da moça. Os olhos não negavam o tesão. A menina via-se cada vez mais perto do rapaz. Agora, conversavam ao pé do ouvido. Olga deixou um sorriso escapulir. No íntimo, gostaria de ser aquela menina que enfeitiçava os homens sem esforço. Estava cansada de conversas. Pensou que deveria se expor menos aos amantes. A sinceridade de Olga era assustadora. Por isso, agora, seria mais superficial. Para flertar com um rapaz usaria mais do cruzar de pernas do que das palavras.
Era como uma mãe que se despede do filho. Ainda maior era o lamento. Olga sentia o fim não porque amava Mateus, apenas pela triztesa do instante. Depois de apanhar a bolsa no chão, a menina seguiu em direção a porta. Mateus levantou-se da poltrona e tentou alcançá-la. Segurou com força o braço fino da garota que logo desprendeu-se das mãos do rapaz. Olga saiu e deixou a porta entre-aberta. Na fresta, via-se Mateus com olhos de esperança. Saiu do apartamento a caminho da casa de Penélope. Andou três quadras. Ainda nas escadas, encontrou a amiga apressada. Esbarraram-se e já morreram de rir.


- Aonde você vai? - perguntou Olga à Penélope.


- Por aí. Vamos?


- Estou com cólicas.


- Deve ser o Mateus.


- É! E adivinha? Ele me ama.


- Hum... - Penélope revirou os olhos.


- E você? Ama?


- Não mais.


- Não ama porque ele te ama?


- Talvez. Eu ame os momentos...


- Também odeio rotinas.


- Ele me cansa.


- Parece que nunca leu Roberto Freire - Sorriu Penélope.


- Nem nunca ouviu Gilberto Gil. - Completou Olga.


Olga e Penélope se olharam e gargalharam, novamente. Enquanto desciam a rua em busca do café mais próximo relembravam a letra de O seu amor, do cantor baiano.

"O seu amor

Ame-o e deixe-o

Livre para amar

O seu amor

Ame-o e deixe-o

Ir aonde quiser

O seu amor

Ame-o e deixe-o brincar

Ame-o e deixe-o correr

Ame-o e deixe-o cansar

Ame-o e deixe-o dormir em paz

O seu amor

Ame-o e deixe-o

ser o que ele é

Ser o que ele é"!