sábado, 24 de maio de 2008

Anjo torto

Ângelo, derivado de anjo, era de longe o melhor dos homens. Apesar de limpo e coeso, as manias do rapaz tornaram-se um empecilho para alguém com vinte e poucos anos e nenhuma amante sedutora.
Todas as manhãs, ainda sonolente, Ângelo saía para as corridas no parque. Com o cronômetro na mão, corria no tempo exato de 13 minutos, 10 segundos e alguns poucos milésimos. Quando perdia-se não alcançava o tempo determinado, via-se obrigado a redobrar as voltas no quarteirão, de modo que fosse possível rodear também cada árvore encontrada no meio do caminho. Além do que, não voltava para casa enquanto não cumprimentasse a todos que caminhassem ao seu lado.
Apesar das manias, Ângelo forjava normalidade. Certa vez, engatou um namorico com a filha de Juca, o bibliotecário. O rapaz viu-se atordoado pela idéia de livrar-se de sua virgindade escandalosa, daquilo que lhe remetia a patética idéia de ser o homem mais santo da cidade. Patética pois, para Ângelo que era filho de mãe solteira e nordestina, uma mulher que todos os dias lhe gritava aos ouvidos que os homens eram caçadores por natureza, entendia o estinto predador como um dom. Ângelo ignorava o póstulo santífico que lhe foi concedido pela boa aparência que preservava, mas, na verdade, o que ele mais desejava, era impregnar-se de cheiro de mulher vadia.
Namorou Virginia, a “Virginal”, por pouco mais de duas semanas, até o dia em que a menina lhe apareceu nua, com os pêlos puros e a carne jovial e inocente à revelia. Virgínia, inibida apenas por alguns instantes, foi tomada por uma vontade ardente que lhe fazia pensar em coisas absurdas em pleno leito nupcial. As coisas absurdas que lhe vinham à cabeça, faziam seu corpo queimar em chamas, enquanto os poros expeliam um suor quente e promíscuo. Ângelo, ao deparar-se com a cena inesperada da menina nua em pêlos, desesperou-se com o tesão que sentia. A testa suava em bicas, enquanto ele perdia os sentidos numa lucidez indesejada, o que o levou a um desmaio repentino, do qual apenas se recuperou na manhã seguinte, com a infeliz notícia de que Virgínia, a virgem, havia sido extraviada para fora da cidade naquela mesma noite, para que se envergonhasse de sua frustração sexual pelo resto da vida. Tal constrangimento a levaria a ser conhecida como Virginia, a libertina.
Ábia conviveu como rapaz do terno sempre polido e cabelo engomado por exatamente dois meses. Ângelo poderia ser um homem algoz e amável ao mesmo tempo. Tinha o gênio forte e a pele macia. Há quem diga que se parecesse com Pietro Crespi, o galã de Cem anos de solidão, obra de García Márquez.

Ângelo Acostumou-se de tal maneira com a presença de Ábia que já era impossível vê-lo distante dos pés da moça. Praticamente, mudou-se para o apartamento da mulher. Ábia retornava das aulas semanais de teatro e avistava o sofá em uma posição diferenciada. A cama, que antes podia-se presenciar o apogeu de uma paixão indomável, havia se tornado ringue de disputa. Ábia não seguia o calendário lunático imposto pelo rapaz.
Ângelo tomou-se por uma ousadia incalculável que até Gastón, o gato, viu-se incomodado com a presença dele na casa. Um dia, Gastón chegou a passar exatamente duas semanas perambulando pelas ruas da cidade, até que fosse dado como desaparecido e ,finalmente, livre daquele tormento em forma de cachos dourados e rosto de bom moço. No entanto, Ângelo espalhou pela cidade, cartazes com a foto do gato, em que oferecia uma recompensa valorosa para quem entregasse Gastón ao lar. Faminto, Gastón voltou por vontade própria.
Ábia irritou-se desde o último fio de cabelo até a ponta de seus dedos macios quando notou o calendário erótico que o rapaz havia predestinado para as noites mais fogosas do casal. Ela não era convencional, nem ao menos, puritana, mas, sexo em posições de yoga lhe causariam dores musculares terríveis.
Na manhã seguinte não foi preciso uma só palavra. Apesar da ousadia, Ângelo sabia bem a hora de abandonar o barco. O rapaz voltou para o quitinete alugado ao lado da mulher amada. Conviveu com aquele desprezo sedutor de Ábia por nada menos que uma semana, quando conheceu Masako, uma intercambista japonesa. Masako era filha de aristocrata e seus costumes eram ainda mais perversos do que os dos demais humanos. Até hoje, Ábia coleciona alguns postais de Ângelo que jura estar completamente curado das manias perturbadoras. Agora, o problema é Masako que desenvolveu toques exóticos para desempenhar atividades sexuais, a preferida chama-se sashimi. Ângelo preferiu não explicar.
Novamente, Ábia sentiu-se descabida. A solidão tomou conta do peito e sua vontade era de atirar-se nas barras das calças de um homem qualquer. Agarrou-se nas paixões mais tímidas e em pouco tempo, voltou a detestar a mesmice de amores concebíveis e viáveis. Voltou a pensar em Novelliqué. Ábia perguntava-se onde andaria o velho poeta. Pergunta-se se o homem ainda costuma tomar café sem açucar, se ainda gosta de jazz ou se ainda não admite que adora country americano. No entanto, o que mais a mulher se pergunta, é se Novelliqué ainda pensa naquela mulher que amou inúmeras vezes no chão frio da sala de estar.

por Tainá Falcão

3 comentários:

Juliano Motter disse...

Gostei bastante dessa crônica, gostei mesmo. Pietro crespi se matou com os punhos numa vasilha cheia de alfazema, ele era um bom moço, Ângelo me pareceu meio chato, Crespi, para mim, não era chato...Consertador de pianolas...Vou nessa, já está tarde e amanhã cedo irei correr no parque.

Mah disse...

aquele chão frio...

Unknown disse...

De Jo�o para Maria:

"Diego n�o conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcan�aram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensid�o do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

Me ajuda a olhar!" (A fun�o da arte, Eduardo Galeano). Estive aqui (rs). Beijo.