domingo, 31 de janeiro de 2010

Os óculos

Levantou-se da cama ainda sem abrir os olhos. Esticou o braço direito ao alcance dos óculos que descansavam em cima da pilha de livros que lhe serviam de mesa. Uma das lentes estava rachada. Na última madrugada, Anita pisoteou os óculos propositalmente depois que ainda bêbado do vinho do jantar, Pedro lhe confessou que dormira com a melhor amiga dela, Raquel, no Natal do último ano. Embora houvesse se deitado na mesma cama que Raquel, ainda que houvesse apenas deslizado os dedos por cima dos seios da moça ainda cobertos pela blusa e presos ao sutiã, sentira-se culpado. Foi um beijo, apenas um beijo que nem ao menos se lembrava do gosto.

Raquel fora o amor de Pedro durante a adolescência. Estudaram juntos até a quarta-série. Depois quando a mãe da menina mudou-se de São Paulo para trabalhar como funcionária pública em Brasília, nunca mais voltaram a se ver. Raquel raramente aparecia na cidade natal em época de férias. Neste dia, depois que Anita havia deixado a festa, ainda chateada por ter deixado cair vinho tinto no vestido branco, Raquel aproximou-se de Pedro. Aos sussurros bem próximos a boca do menino, Raquel confessou que estava a ponto de cometer uma loucura. Ele, já embevecido pela beleza de Raquel, beijou-lhe o pescoço e depois a boca. Desceu a mão que alisava os cabelos pelos seios da menina. Depois de permitir que Pedro lhe acariciasse os seios, ainda deitada no chão da cozinha, Raquel aproximou seu corpo ao do rapaz, forçando um choro de arrependimento que muito pouco aparentava verdadeiro. Pedro sorriu e levantou-se.

Passou o verão inteiro ouvindo ironias de Anita que já percebia o interesse do namorado pela amiga. Porém, nunca havia lhe passado pela cabeça confessar o que aconteceu naquela noite de Natal por temer que Anita fizesse uma loucura. Outra vez, Anita queimou os livros que Pedro mais gostava de uma só vez. Cem anos de solidão, Álbum de casamento, nem os poemas de Neruda lhe sobraram para contar história. No entanto, nada disso o fazia a amar menos, admira-la menos. Ao contrário, a cada pasmo de loucura, Pedro sentia-se orgulhoso, gostava de desafiá-la. No íntimo, era um homem frágil e por isso encontrava em Anita bravura infinita, sabia que poderia apoiar-se nela.

Depois que lhe contou a verdade sobre Raquel, Anita lhe estapeou a cara. Os óculos escorregaram do rosto e foram esmagados pelo salto da sandália de Anita. Sorria como se prendesse a vingança entre os lábios. No outro dia, depois que preparava o café com as lentes dos óculos quebradas, Anita tocou a campanhia. Ajoelhada, com as mãos agarradas aos joelhos de Pedro, Anita lhe implorava perdão. Chorava e lhe dizia com voz infantilizada que mudaria, seria uma mulher comportada. Pedro a olhava com desdém, tirou os óculos do rosto para não olhar aquela cena que lhe causava náuseas. Puxou Anita pelos braços e a colocou firme, em pé.

- Não dormi com Raquel. Mas gostaria. Gostaria de ter transado com ela como um louco naquela noite - disse Pedro ao chacoalhar Anita pelos braços.

Anita que chorava copiosamente como uma criança desnorteada lhe encarou nos olhos.

- Não me importa. Eu perdôo.

- Olha, quer saber? eu dormi com a Estela, aquela sua prima de Ribeirão. E sabe a Marcinha? Aquela que conheci na faculdade e disse que era filha de amigos do meu pai? Também trepamos. A Dora, sua prima, a Mariah, da aula de francês...

Anita parecia surda, lhe encarava no rosto e consentia, acenava com a cabeça como que lhe perdoasse os erros.

- Não quero ouvir, não me importa - dizia.

Desesperado com a submissão de Anita inventou as piores mentiras na tentativa de ver ressurgir a mulher que amava, a verdadeira Anita, forte e corajosa. Anita que lhe revirava as roupas do armário em busca de uma prova legítima contra traição. Anita que lhe virava a mesa de jantar, que desligava o celular para lhe deixar irritado, que soltava palavrões em frente aos avós dele. Mas também, Anita que lhe preparava o café de amanhã com pouco açúcar, que lhe presenteava com os melhores beijos, Anita que lhe dizia: está tudo bem, você vai conseguir. Pedro colocou os óculos e viu que Anita chorava. Era a primeira vez que via a mulher chorar, talvez tamanho fosse o espanto. Ajoelhou-se junto a mulher, no chão da sala de estar de seu apartamento. Anita logo dormiu envolvida nos braços de Pedro. Ele, cansado, abriu um livro de Roberto Freire. Entre as folhas, um papel e o número de Raquel. Na outra manhã, decidiu procurá-la.

2 comentários:

Eduardo Ferreira disse...

um homem que não faz uma mulher chorar jamais teve a certeza que ela o amou um dia.


pelo menos ele foi sincero em fugir da mulher que não mais conhece.

amo seus contos Tainá e esse seus jejum literário é uma tortura! hehe

mais uma vez, lindo!

M. Mares Guia disse...

Convive com os teus antes de escrevê-los. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.
Mas... saudade de te ler.