A caminho do ponto de ônibus mais próximo, Ana apertava os passos. As pernas, de tão longas, quase enrroscavam-se uma na outra, fazendo um nó. O vento embaraçava o cabelo da menina com brutalidade. De modo que as mechas alvoroçadas lhe tapavam a visão. O trovão e as nuvens escuras anunciavam a chegada de uma tempestade.
Ana corria. A sacola de papel que guardava as laranjas rasgou. Ainda com os braços ocupados com outra bolsa que carregava os molhos de tomate dentro, a menina agachou-se e tateou o chão para tentar conter as laranjas que já rolavam entre os pés sujos do mendigo. Ana parou em frente ao homem baixo e sem dentes que completassem um sorriso de outdoor. Apanhou as laranjas e entregou ao mendigo.
As gotas de chuva agora já pingavam lentamente. Ana caminhou até a parada e encaixou-se entre aqueles que também esperavam com agonia a chegada do ônibus que lhes levariam ao conforto do lar. Do lado direito, o dono da barraca de ameixas tentava proteger as frutas da água cobrindo-as com o remendo de sacos plásticos. Ana aproveitou uma fresta no caixote para esquentar as mãos entre as frutas. No fundo da bandeija, sentiu a mais madura das ameixas. Achou que não deveria, de início, mas não resistiu em apertá-la até que o suco vermelho lhe escorresse entre os dedos. Deixou que um sorriso lhe escapulisse dos lábios. O corpo caiu levemente para trás, como se adormecesse. Sentiu a mão esquerda ser acariciada. Abriu os olhos. Era tímida e, por isso, ignorou o gesto de carinho. Ainda assim, não recolheu a mão, deixou-a solta, quase que oferecendo-a aos afagos do desconhecido.
O carinho na mão a fez lembrar um antigo caso de amor. Ligeiro, o homem que para Ana chamava-se Henrique mas que negava-lhe qualquer prova de identidade e referencia, lhe agradou apenas pelo modo como lhe conduzia as mãos. Sempre viu nobreza naquele gesto. O homem a conhecia apenas de tardes chuvosas como aquela, em um quarto abandonado no centro da cidade, onde as buzinas dos carros entoavam a sinfonia dos amores proibidos do meio-dia. Os dedos do amado desconhecido foram vistos muito antes dos olhos. Ana o descobriu quando jantava sozinha em um restaurante perto de casa. Sozinho também, o homem estava de costas. Bebericava um vinho de uma garrafa sem rótulo e escrevia pedaços de poesia no guardanapo. Ana esticava os olhos para alcançar o que diziam as letras em garrancho. Desistiu. No entanto, os olhos continuavam vidrados nos gestos das mãos do homem. No modo como carregava o copo até a boca, na maneira como posicionava a caneta em cima do guardanapo, como fazia sinais ao garçom sonolento.
Quando estavam na cama, depois do amor, costumavam brincar com as sombras dos dedos. Ana sorria como uma criança, gargalhava alto. O homem deitado, apenas olhava. Era raro vê-lo sorrindo. Por isso, Ana sempre viu tristeza nos poetas. Pensava que eles sabiam demais da vida e, assim, não sorriam das ilusões.
Outra ventania anunciou a chegada do sol. Ana entrou no ônibus. Olhou meio de lado para tentar encontrar as mãos que haviam lhe acariciado antes. Olhou nos olhos de todos que aguardavam na parada, um por um. Ninguém lhe deu atenção. Ana sentou-se na primeira cadeira da frente, o ônibus partiu com os olhos de Ana ainda abertos, revistavando a multidão.
3 comentários:
Po maneiro tatá, gostei dos deus posts, ainda não tinha lido.
bjo, caê
dias de chuvas me lembram muito alguém, alguém me lembra músicas, músicas outras pessoas... esse ciclos sem fim moldam nossos corpos e toques para as próximas memórias.
gostei muito tainá. remexeu meu baú particular.
Parabens! Nao conhecia esse seu lado! A cada dia que passa o misterio que envolve o seu eu mais profundo me fascina mais! bjs Christian
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