terça-feira, 14 de abril de 2009

O menino anjo

Naquela madrugada Penélope não pregou os olhos. Logo cedo, o celular entoava a canção que dizia "When you give half of you, I want all of you". Tinha uma melodia suave. No mesmo instante, Penélope sentiu o mesmo cheiro doce do incenso que perfumava a casa do antigo amor. O ventou que corria para dentro do quarto de Penélope alisava os cabelos com alvoroço. Uma agonia que lembrava os dedos do velho amor embaraçando com brutalidade os finos fios do cabelo da menina. Penélope sorriu e revirou-se na cama. Ela sabia que aquela era uma manhã de terça-feira e o fim de semana estava longe. Mesmo assim, sorriu e não revirou os olhos. Estava cansada da última noite.
O telefone tocou na sala. Penélope resistiu e ignorou. Alguém do outro lado da linha insistia. Por um momento acreditou que fosse ele, o amor antigo que lhe pediria um reencontro apressado. Penélope resistiria. Era orgulhosa demais para se render ao pedido que não viesse seguido de suplícios, lágrimas, arrependimento. Não iria. Ficaria dormindo. Não atenderia o telefone naquele dia, pensou. Alguém do outro lado da linha talvez apenas quisesse uma palavra de conforto. Penélope iria até o telefone se soubesse que era Luana, para chorar as dores. Repensou e entendeu que estava em pedaços e, portanto, não poderia varrer os cacos de outro coração partido. Cobriu-se com o cobertor como que para esconder-se daquele do outro lado da linha. O telefone parou. Penélope sentiu-se aliviada.
Agora sem conseguir dormir, Penélope levantou da cama. Decidiu que não iria trabalhar. As mãos já suavam. Não sabia mentir, nem contrariar regras. Era rígida demais. "É por causa de pessoas como você que faço análise", disse sua tia certa noite de muitos goles de vinho. Penélope não ligava. Lavou o rosto, escovou os dentes e os cabelos, perfumou-se. Entrou no carro. Decidiu que dirigiria sem destino. Era o que sua mãe lhe propunha em dias de domingo quando a pista que beirava a orla da praia parecia deserta. Mas era uma terça-feira, dez da manhã. Os carros estavam enfileirados. Penélope ignorou as buzinas e seguiu à 60km.
No sinal, viu de longe um menino que sorria quando a mãe lhe empurrava na cadeira de rodas para o outro lado da rua. Ela era jovem. Ele gargalhava. Penélope prestava atenção na cena. O menino lhe encarou nos olhos, agora sério, parecia triste. Ela desviou o olhar. Parou o carro na esquina seguinte e desceu. Sentou no meio fio, tinha deixado a porta do carro aberta. Não ligou. Lembrou do irmão mais novo. Era também um menino alegre numa cadeira de rodas. Desabou em lágrimas ainda com falta de ar. Lembrou do que o médico lhe disse da última vez "É um milagre esse menino ainda estar vivo". Enxugou as lágrimas e pensou que o milagre era o próprio menino.

4 comentários:

Renato Mendes disse...

Garota... De onde você tira tanta inspiração?

Eduardo Ferreira disse...

penélope é sensível a um ponto preocupante... existem problemas maiores nesse mundo, sempre vão existir.

mas uma vida onde se esqueça os seus não vale ser vivida.

deixe as marcas... e sofra o necessário.

muito bom, como sempre

M. Mares Guia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rábula disse...

Gostei muito. Linda. Seja quem for Penélope.