quarta-feira, 22 de abril de 2009

O encontro dos corações livres

- Eu sinto que você me ama.


- Não tente falar de amor, Olga. - respondeu Mateus ainda com a boca marcada de vinho.


- O que foi que disse?


- Eu disse que você não deveria falar de amor.


Engatinhando, Olga aproximou-se do rapaz que esparramado na poltrona, no canto da sala do apartamento de um amigo próximo, tomava o vinho da garrafa. Olga parou, ainda com o mesmo olhar que lhe rendia um vinco entre as sobrancelhas. A expressão não poderia ser levada a sério quando se tinha os olhos repuxados como os de uma gueixa. Os olhos sorriam mesmo em momentos que exigiam a seriedade de um pai de família.


- Olga, a verdade é que te amo mas não tenho razões para discutir o meu sentimento com alguém que não me compreenderia. O amor não é você, não sou eu. O amor é o que está em nós, aquilo que me identifica a ti...



- É muito tempo para mim. Cansei... - disse a menina a dar com os ombros. Olga virou-lhe as costas e andou em direção ao espelho.

- De mim?


- Talvez.


- Você sempre cansa das pessoas.


- Daquelas que me dão tédio.

Nesse momento, Olga parecia assumir um outro corpo. Era como se nela existissem duas mulheres. Um metade era ousada como uma dançarina de boate. A outra, séria como uma freira casta. E era desse modo que se comportava sempre que a conversa assumia um tom apelativo, de lamento. Olga detestava lamento. Era prática.

- Agora você foi longe demais. Olha os lençóis daquela cama: testemunham o tédio, por acaso?


Olga não deu ouvidos ao rapaz. Se olhava no espelho ainda semi-nua. O corpo dela era miúdo mas nem por isso acanhado. Comportava-se como uma platéia sonolenta diante de um espetáculo longo demais. Sorriu de canto de boca e encostou-se na janela próxima ao espelho.


- A gente ainda vai se ver? - indagou Mateus que já cambaleava de bêbado.


- Acho que não - disse Olga que agora penetrava o olhar no casal do outro lado da rua.

Sentados em um banco cobertos pelos galhos da amendoeira que os protegiam dos últimos raios de sol naquela tarde de vento fresco, o casal trocava confidencias e semelhanças. Vez ou outra, a moça gargalhava e pendia o corpo para trás. O vento varria os fios do cabelo que cobriam o busto dela. Em instantes como esse, o rapaz aproveitava para aproximar-se um palmo do corpo da moça. Os olhos não negavam o tesão. A menina via-se cada vez mais perto do rapaz. Agora, conversavam ao pé do ouvido. Olga deixou um sorriso escapulir. No íntimo, gostaria de ser aquela menina que enfeitiçava os homens sem esforço. Estava cansada de conversas. Pensou que deveria se expor menos aos amantes. A sinceridade de Olga era assustadora. Por isso, agora, seria mais superficial. Para flertar com um rapaz usaria mais do cruzar de pernas do que das palavras.
Era como uma mãe que se despede do filho. Ainda maior era o lamento. Olga sentia o fim não porque amava Mateus, apenas pela triztesa do instante. Depois de apanhar a bolsa no chão, a menina seguiu em direção a porta. Mateus levantou-se da poltrona e tentou alcançá-la. Segurou com força o braço fino da garota que logo desprendeu-se das mãos do rapaz. Olga saiu e deixou a porta entre-aberta. Na fresta, via-se Mateus com olhos de esperança. Saiu do apartamento a caminho da casa de Penélope. Andou três quadras. Ainda nas escadas, encontrou a amiga apressada. Esbarraram-se e já morreram de rir.


- Aonde você vai? - perguntou Olga à Penélope.


- Por aí. Vamos?


- Estou com cólicas.


- Deve ser o Mateus.


- É! E adivinha? Ele me ama.


- Hum... - Penélope revirou os olhos.


- E você? Ama?


- Não mais.


- Não ama porque ele te ama?


- Talvez. Eu ame os momentos...


- Também odeio rotinas.


- Ele me cansa.


- Parece que nunca leu Roberto Freire - Sorriu Penélope.


- Nem nunca ouviu Gilberto Gil. - Completou Olga.


Olga e Penélope se olharam e gargalharam, novamente. Enquanto desciam a rua em busca do café mais próximo relembravam a letra de O seu amor, do cantor baiano.

"O seu amor

Ame-o e deixe-o

Livre para amar

O seu amor

Ame-o e deixe-o

Ir aonde quiser

O seu amor

Ame-o e deixe-o brincar

Ame-o e deixe-o correr

Ame-o e deixe-o cansar

Ame-o e deixe-o dormir em paz

O seu amor

Ame-o e deixe-o

ser o que ele é

Ser o que ele é"!

terça-feira, 14 de abril de 2009

O menino anjo

Naquela madrugada Penélope não pregou os olhos. Logo cedo, o celular entoava a canção que dizia "When you give half of you, I want all of you". Tinha uma melodia suave. No mesmo instante, Penélope sentiu o mesmo cheiro doce do incenso que perfumava a casa do antigo amor. O ventou que corria para dentro do quarto de Penélope alisava os cabelos com alvoroço. Uma agonia que lembrava os dedos do velho amor embaraçando com brutalidade os finos fios do cabelo da menina. Penélope sorriu e revirou-se na cama. Ela sabia que aquela era uma manhã de terça-feira e o fim de semana estava longe. Mesmo assim, sorriu e não revirou os olhos. Estava cansada da última noite.
O telefone tocou na sala. Penélope resistiu e ignorou. Alguém do outro lado da linha insistia. Por um momento acreditou que fosse ele, o amor antigo que lhe pediria um reencontro apressado. Penélope resistiria. Era orgulhosa demais para se render ao pedido que não viesse seguido de suplícios, lágrimas, arrependimento. Não iria. Ficaria dormindo. Não atenderia o telefone naquele dia, pensou. Alguém do outro lado da linha talvez apenas quisesse uma palavra de conforto. Penélope iria até o telefone se soubesse que era Luana, para chorar as dores. Repensou e entendeu que estava em pedaços e, portanto, não poderia varrer os cacos de outro coração partido. Cobriu-se com o cobertor como que para esconder-se daquele do outro lado da linha. O telefone parou. Penélope sentiu-se aliviada.
Agora sem conseguir dormir, Penélope levantou da cama. Decidiu que não iria trabalhar. As mãos já suavam. Não sabia mentir, nem contrariar regras. Era rígida demais. "É por causa de pessoas como você que faço análise", disse sua tia certa noite de muitos goles de vinho. Penélope não ligava. Lavou o rosto, escovou os dentes e os cabelos, perfumou-se. Entrou no carro. Decidiu que dirigiria sem destino. Era o que sua mãe lhe propunha em dias de domingo quando a pista que beirava a orla da praia parecia deserta. Mas era uma terça-feira, dez da manhã. Os carros estavam enfileirados. Penélope ignorou as buzinas e seguiu à 60km.
No sinal, viu de longe um menino que sorria quando a mãe lhe empurrava na cadeira de rodas para o outro lado da rua. Ela era jovem. Ele gargalhava. Penélope prestava atenção na cena. O menino lhe encarou nos olhos, agora sério, parecia triste. Ela desviou o olhar. Parou o carro na esquina seguinte e desceu. Sentou no meio fio, tinha deixado a porta do carro aberta. Não ligou. Lembrou do irmão mais novo. Era também um menino alegre numa cadeira de rodas. Desabou em lágrimas ainda com falta de ar. Lembrou do que o médico lhe disse da última vez "É um milagre esse menino ainda estar vivo". Enxugou as lágrimas e pensou que o milagre era o próprio menino.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A metade de Penélope

- Eu já disse que vou... - respondeu Penélope ao revirar os olhos.
Tinha presa entre os dedos uma mecha de cabelo. Escutava com paciência a voz amorosa do outro lado da linha. Sorria nervosa e forjava interesse nas palavras do pretendente.
Bocejou. Esticou-se para olhar as horas no relógio da cozinha e lembrou que estava atrasada para a sessão de terapia.
Dessa vez, não era desculpa para livrar-se de uma conversa desinteressante. Penélope realmente iria à análise. Várias vezes faltou as aulas de ballet e espanhol. Mas nunca deixou de ir as sessões de terapia.
Desligou o telefone antes de qualquer convite indesejado. Aquele rapaz era apenas um passa-tempo. Disso, tinha certeza. Mesmo que fosse injusto definir assim alguém que lhe guardava algumas horas do dia. Não poderia ser o contrário, Penélope era uma sincera assumida. Não me interpretem mal. Penélope não era uma mulher amarga, embora preferisse a verdade. O menino do outro lado da linha - esse que não merece descrições - era uma distração para Penélope, que não gostava do tédio absoluto. A voz mansa do rapaz a alegrava. Passavam horas divagando sobre política e crimes de primeira página do caderno policial de algum jornal popular. Ela gostava de inventar histórias sobre a vida dos assassinos de sangue frio. Dizia que alguns eram bem casados e rezavam o terço com a sogra em missas de domingo. Outros eram amados acima da crueldade que exalavam até mesmo no cheiro do suor. O menino do outro lado da linha ouvia atentamente e , por vezes, intervia. Dizia que criminoso de capa de jornal tinha que apanhar muito. E que se fosse dele a filha que "aquele monstro" violentara, não pensaria duas vezes, deixaria o criminoso indefeso: "primeiro as orelhas, depois os olhos..."
Penélope interrompia e fingia concordar: "Eu faria pior! Por isso, prefiro nem dizer o que faria". E era verdade, Penélope era incapaz de matar uma mosca. Quando pequena, as pernas eram cobertas de feridas. Jura que nunca sufocou um mosquito na mão. Tinha pena. Assim como olhar nos olhos dos assassinos que eram expostos no programa policial lhe causavam aperto no peito. Sentia vontade de chorar. Mas segurava as lágrimas para não parecer irracional.
Chegou atrasada na análise. A psicóloga a aguardava em pé, encostada na porta. Laura recebia Penélope com a caridade de uma mãe. Ela lhe oferecia um abraço apertado e um pedaço de chocolate. Penélope preferia os lenços umidecidos com cheiro de rosas. Era ansiosa. As mãos suavam.
- Vai bem? Perguntou Laura à Penélope.
- Sim.
- E aqueles medos?
- Agora penso em viver.
- Como?
- É penso na vida. Eu olho meu pai, aquele homem e os cabelos brancos que ele colecina... .
- Saiu do hospital?
- Sim. Saiu do hospital. A médica lhe perguntou se preferia morrer a parar de fumar. Ele disse que ficaria com a segunda opção. Meu pai é um homem forte... quero ser igual a ele.
- Sua mãe também é forte?
- Mais do que imaginava. Mas deveria entregar-se com boa vontade à vida.
- Como?
O telefone tocou. Pediu desculpas a Laura e correu às gargalhadas. Subiu as escadas do prédio antigos às pressas. Ele estava lá. A porta já estava aberta. Ele estava no corredor, com os braços estirados e lhe oferecia um abraço. Não era um abraço de mãe. Era um abraço apertado de saudade seguido de um longo suspiro.
- Não achei que viria.
- Eu também não. Respondeu Penélope que não era acostumada com a impulsão.
Sempre foi racional. Mas tinha escolhido a vida. Tinha escolhido ser sincera com o mundo. O homem que a aguardava na porta de casa era o escolhido. Aquele que considerava o "Karma", o amante eterno, o homem da vida dela. Sem descolarem os corpos que já suavam de ansiedade e calor, entraram no apartamento. Ajoelharam-se no chão. Ele oferecia o corpo á Penélope, que logo aceitou o peso do amado.
- Desabotoa... - susurrou Penélope e deitou.