sábado, 19 de janeiro de 2008

Um breve conto sobre Ábia

Ao despertar, às 5 da manhã, esperava os primeiros fleches de luz acariciar-lhe a face, como a mão áspera do pai tocando-lhe o rosto ainda naquela época em que chorava por amores banais. Era como uma benção. Como se as primeiras horas do dia lhe trouxessem sorte. Mesmo em manhãs cinzentas de ventos úmidos, sentia-se forte o bastante para enfrentar o chão da cidade e o semblante cansado de executivos apressados ao celular, histéricos engravatados em sapatos polidos.
Preservava um estado de contemplação constante. Em tom subentendido de saudade, a mãe lhe dizia que a mania de apreciação do mundo, formas, cores, lugares, rostos, sentimentos, idéias, era coisa do pai. Helena poucas vezes tocava no nome do falecido marido. Se não, quando para exaltar a péssima vocação para chefe de família. Referia-se a ele como um “beberrão”, um verdadeiro “borra botas”.
Quando criança, a menina colocava-se na ponta dos pés para alcançar a janela do quartinho dos fundos, o que lhe permitia observar o senhor decrépito, preso num quarto empoeirado, tomado por uma melancolia excessiva e olhar frágil. Mesmo quando o homem morreu, triste, louco e magro, preso num quarto fúnebre, não permitiu que reformassem o local. A poeira, os quadros sujos de tinta velha, o cheiro forte da morte eram recordações paternas.
Chama-se Ábia, abençoada por Deus.
Cabelos longos, negros, encaracolados. Olhos miúdos, sobrancelha cerrada, curvas salientes. Odeia pretensão, crença exagerada, amor morno. Repudia veemente a mesmice. Detesta rotina, atos mecânicos e amantes constantes. É mística, cética, chata. Vai ao cinema em domingos lotados, ao teatro quando está vazio. Nunca fez plástica no nariz, nos seios ou nos quadris. Adora poetas, músicos, artistas, homens, mulheres, solteiros, casados infelizes, senhoras de conversas tolas, amigos do peito, altos, negros, morenos, ativistas, ecologia. Ábia adora o mar, o céu, enterrar os pés na areia úmida, tomar café em fim de tarde. Odeia formigas. Adora Lírios, rosas, violetas, margaridas. O sol afagando o rosto às 5h da manhã.


por Tainá Falcão

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

O luto da mulher infeliz

Em um dia claro de verão caloroso, vestiu-se de preto. Abotoou os punhos e a garganta, deixou que o luto cobrisse os tornozelos, o colo e o rosto.
Na estante, os livros jaziam empoeirados. O gato esquálido miava esganiçado, num gemido suplicante, sedento de água, comida, amor e cafuné.
Na casa imunda, suja de pó e tristeza, o sol tímido penetrava as frestas das janelas de vidro escuro. O vento que assanhava as cortinas de renda, soprava o rosto da mulher infeliz, sem brio e dona de uma alma decadente. Os olhos pareciam as únicas partes vivas do corpo. Eram olhos grandes, fortes, fugazes mas, com a nostalgia de uma criança de rua.
Sentada numa poltrona, em frente as janelas, deixava o dia correr apressado, como se esperasse que, de repente, o amanhã não existisse mais. Como se desejasse que o dia fosse coberto pela noite e, por fim, a luz radiante do sol não mais lhe clareasse o rosto. Deste modo, a mulher infeliz diminuiria de tamanho, encolhendo-se até tornar-se pequena e esquálida como o gato faminto, permitindo servir-se, ela própria, de banquete para o animal.
No mais, a mulher infeliz parecia desejar a morte discreta, sem sangue ou tiros barulhentos, parecia querer o fim de modo silencioso, onde a carcaça de pele podre virasse pó junto à poeira dos móveis da sala.


por Tainá Falcão