Cobria-se de um suor queimando que lhe escorria apressado no rosto. Meio ao devaneio de seus últimos instantes perante aos filhos e familiares de pouco parentesco, apenas conseguia pensar na neblina da casa do lago, nas noites ensandecidas com as milhares de amantes, no reflexo do sol no cabelo de Amanda, a filha mais velha, talvez, a única que, verdadeiramente, havia desenvolvido uma relação de cumplicidade com o pai.
Enquanto o suor corrosivo de seu corpo lhe conduzia a morte, lembrava-se de coisas inúteis. Diante do choro descontrolado da mulher, recordou-se o quão miserável havia sido a vida à dois. Não se lembrava da última vez que fizeram amor e nem sentia a mínima vontade de atracar-se à esposa em abraço apressado, em um gesto de desespero de quem se encontra sob o julgo de morte.
Era desprezo o que sentia ao ver os parentes e seus olhares moribundos ao redor da cama. Olhares que, naturalmente, antecipavam sua partida. A única que lhe trouxe questionamentos, era a nova esposa do irmão. A mulher desenvolveu facetas de quem não sabia, realmente, como se portar, já que esta era a primeira e, talvez, a última que encontraria seu cunhado. Ele olhava fixo naquela mulher de seios murchos e lembrava-se do enterro de seu bisavô. O velho era um carrasco. Sobretudo barão e, um tanto, mulherengo. Jamais conheceu o filho bastardo, pai do senhor a beira da morte, que havia morrido antes mesmo do velho. No enterro do pai, lembrou-se, enquanto o suor tornava-se irrelevante, o clima de disputa no velório. De um lado do caixão, apresentava-se a família do bastardo. Cumprimentava o barão, já morto, com certa ousadia. Ao contrário, a baronesa e as quatro filhas beatas, lançavam olhares de fuzilamento à família. Lembrou-se o senhor em seu leito de morte, que a época, estava com 14 anos e o constrangimento daquela situação, a qual só viera entender anos mais tarde, incomodava mais que o velho moribundo morto e sua tez pálida, o qual conhecera, naquele mesmo instante, como bisavô. Era estranho chamar de bisavô a uma pessoa que só havia visto uma única vez, sem ao menos abraçar-lhe ou sentar-se ao seu lado para ouvir histórias das donzelas de antigamente.
Voltou-se a concentra-se no choro estridente de sua mulher e naquele ambiente melancólico, o qual sobreviveu seus últimos 2 meses de vida, acompanhado daquela doença terminal. O quartinho apertado foi escolha sua. Era o quarto de sua filha mais velha, a qual desenvolvera um afeto instantâneo, desde o momento em que a viu frágil, saindo do útero rasgado de sua mulher.
A menina havia crescido e se tornado uma mulher robusta de pernas delineadas, como as de uma bailarina. Há alguns anos, havia desenvolvido o vício de fumar em horas impróprias, o que na verdade, parecia desculpa para acabar com as reuniões insuportáveis de família.
Lembrou-se o senhor, de quando sua filha do meio completava 15 anos. Era uma grande festa , repleta de flores e parentes comportados. Uma tristeza- pensou ele- sem nenhum constrangimento. Enquanto sua tia, irmã de sua mãe, contava, aos montes, histórias de sua antiga mocidade, a filha mais velha, no auge de seus 17 anos, arrancou o charuto cubano da boca indecente de seu padrinho e iniciou-se num processo de barrufadas contínuas nas caras assustadas dos convidados. Sua mãe levantou-se envergonhada na tentativa frustrada de puxar a menina pelos braços, foi barrada pela força austéra do marido - o senhor no seu leito de morte- que , anestesiado pelo modo de como sua filha mais nova conduzia o charuto à boca, num gesto não apto de vergonha porém, prazeroso e provocativo, apreciou e ainda degustou do fumo junto à menina.
Abre os olhos, depara-se com o quarto vazio. A penúmbra anuncia sua partida. A visão torna-se distante. Numa tentativa falha de manter-se acordado, os olhos padecem e pedem sossego. Só lhe resta à calmaria da escuridão e o ensandecido choro da viúva que o persegue ainda agora.
Inicia-se em um processo de recapitulação. Recorda-se de quando seu irmão mais novo, aos 12 anos, foi atropelado por uma motocicleta desregulada e bateu a cabeça no meio fio. Lembrou-se que o menino havia perdido a memória e quando acordou relatava-lhe um filme contínuo que passou em sua mente, desde sua infância até as luzes esmagantes do centro cirúrgico, sem saber, apresentava ali, o primeiro anúncio da morte.
Esperava, ociosamente, que o filme de sua vida lhe aparecesse. Enquanto esperava, pensava na dor insuportável que sentiu quando descobriu a doença. A dor na consciência por saber que sua morte estava marcada e que não adiantava tardiá-la com remédios e tratamentos caríssimos, pois, a morte viria e seria breve.
Enquanto pensava no colapso de seu sistema imunológico, também lembrava das indústrias farmacêuticas e dos milhões, bilhões, trilhões que ganhavam com mortes antecipadas como a dele. Pensava nos meninos da África e no anúncio espetacular do jornal da manhã, onda lhe diziam que um homem havia morrido com uma gripe escandalosa, em pleno século XXI, sem dinheiro para custear sua saúde.
- Hipocrisia! - Disse o senhor, numa tentava feroz de rebelião.
Pensando em Little boy, Enola gay... Tinha certeza – caro Freud- “Nunca dominaremos completamente a natureza e, o nosso organismo corporal, ele mesmo parte desta natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de realização e adaptação”, balbuciava, atropelando as palavras.
Sentia-se inútil, novamente. Inútil por saber que havia se esforçado para estudar nos melhores colégios, ingressar na universidade de medicina, montar seu escritório, casar e ter uma família, comer todas as estagiárias (quase nunca) e ponto, morrer inutilizado. Recordava-se, vagamente – era difícil concentrar-se – nos milhares de pacientes que morreram assim, de uma morte faminta que comia os minutos de seu tempo. A partir do momento que lhe foi dada a notícia, parecia iniciar uma contagem regressiva para o fim de tudo, por um relógio invisível e persistente, que lhe avisava, pontualmente, quando chegava o fim do dia.
Enquanto o suor corrosivo de seu corpo lhe conduzia a morte, lembrava-se de coisas inúteis. Diante do choro descontrolado da mulher, recordou-se o quão miserável havia sido a vida à dois. Não se lembrava da última vez que fizeram amor e nem sentia a mínima vontade de atracar-se à esposa em abraço apressado, em um gesto de desespero de quem se encontra sob o julgo de morte.
Era desprezo o que sentia ao ver os parentes e seus olhares moribundos ao redor da cama. Olhares que, naturalmente, antecipavam sua partida. A única que lhe trouxe questionamentos, era a nova esposa do irmão. A mulher desenvolveu facetas de quem não sabia, realmente, como se portar, já que esta era a primeira e, talvez, a última que encontraria seu cunhado. Ele olhava fixo naquela mulher de seios murchos e lembrava-se do enterro de seu bisavô. O velho era um carrasco. Sobretudo barão e, um tanto, mulherengo. Jamais conheceu o filho bastardo, pai do senhor a beira da morte, que havia morrido antes mesmo do velho. No enterro do pai, lembrou-se, enquanto o suor tornava-se irrelevante, o clima de disputa no velório. De um lado do caixão, apresentava-se a família do bastardo. Cumprimentava o barão, já morto, com certa ousadia. Ao contrário, a baronesa e as quatro filhas beatas, lançavam olhares de fuzilamento à família. Lembrou-se o senhor em seu leito de morte, que a época, estava com 14 anos e o constrangimento daquela situação, a qual só viera entender anos mais tarde, incomodava mais que o velho moribundo morto e sua tez pálida, o qual conhecera, naquele mesmo instante, como bisavô. Era estranho chamar de bisavô a uma pessoa que só havia visto uma única vez, sem ao menos abraçar-lhe ou sentar-se ao seu lado para ouvir histórias das donzelas de antigamente.
Voltou-se a concentra-se no choro estridente de sua mulher e naquele ambiente melancólico, o qual sobreviveu seus últimos 2 meses de vida, acompanhado daquela doença terminal. O quartinho apertado foi escolha sua. Era o quarto de sua filha mais velha, a qual desenvolvera um afeto instantâneo, desde o momento em que a viu frágil, saindo do útero rasgado de sua mulher.
A menina havia crescido e se tornado uma mulher robusta de pernas delineadas, como as de uma bailarina. Há alguns anos, havia desenvolvido o vício de fumar em horas impróprias, o que na verdade, parecia desculpa para acabar com as reuniões insuportáveis de família.
Lembrou-se o senhor, de quando sua filha do meio completava 15 anos. Era uma grande festa , repleta de flores e parentes comportados. Uma tristeza- pensou ele- sem nenhum constrangimento. Enquanto sua tia, irmã de sua mãe, contava, aos montes, histórias de sua antiga mocidade, a filha mais velha, no auge de seus 17 anos, arrancou o charuto cubano da boca indecente de seu padrinho e iniciou-se num processo de barrufadas contínuas nas caras assustadas dos convidados. Sua mãe levantou-se envergonhada na tentativa frustrada de puxar a menina pelos braços, foi barrada pela força austéra do marido - o senhor no seu leito de morte- que , anestesiado pelo modo de como sua filha mais nova conduzia o charuto à boca, num gesto não apto de vergonha porém, prazeroso e provocativo, apreciou e ainda degustou do fumo junto à menina.
Abre os olhos, depara-se com o quarto vazio. A penúmbra anuncia sua partida. A visão torna-se distante. Numa tentativa falha de manter-se acordado, os olhos padecem e pedem sossego. Só lhe resta à calmaria da escuridão e o ensandecido choro da viúva que o persegue ainda agora.
Inicia-se em um processo de recapitulação. Recorda-se de quando seu irmão mais novo, aos 12 anos, foi atropelado por uma motocicleta desregulada e bateu a cabeça no meio fio. Lembrou-se que o menino havia perdido a memória e quando acordou relatava-lhe um filme contínuo que passou em sua mente, desde sua infância até as luzes esmagantes do centro cirúrgico, sem saber, apresentava ali, o primeiro anúncio da morte.
Esperava, ociosamente, que o filme de sua vida lhe aparecesse. Enquanto esperava, pensava na dor insuportável que sentiu quando descobriu a doença. A dor na consciência por saber que sua morte estava marcada e que não adiantava tardiá-la com remédios e tratamentos caríssimos, pois, a morte viria e seria breve.
Enquanto pensava no colapso de seu sistema imunológico, também lembrava das indústrias farmacêuticas e dos milhões, bilhões, trilhões que ganhavam com mortes antecipadas como a dele. Pensava nos meninos da África e no anúncio espetacular do jornal da manhã, onda lhe diziam que um homem havia morrido com uma gripe escandalosa, em pleno século XXI, sem dinheiro para custear sua saúde.
- Hipocrisia! - Disse o senhor, numa tentava feroz de rebelião.
Pensando em Little boy, Enola gay... Tinha certeza – caro Freud- “Nunca dominaremos completamente a natureza e, o nosso organismo corporal, ele mesmo parte desta natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de realização e adaptação”, balbuciava, atropelando as palavras.
Sentia-se inútil, novamente. Inútil por saber que havia se esforçado para estudar nos melhores colégios, ingressar na universidade de medicina, montar seu escritório, casar e ter uma família, comer todas as estagiárias (quase nunca) e ponto, morrer inutilizado. Recordava-se, vagamente – era difícil concentrar-se – nos milhares de pacientes que morreram assim, de uma morte faminta que comia os minutos de seu tempo. A partir do momento que lhe foi dada a notícia, parecia iniciar uma contagem regressiva para o fim de tudo, por um relógio invisível e persistente, que lhe avisava, pontualmente, quando chegava o fim do dia.
Mais um dia. Lembrou-se da bela criança de apenas 5 anos que lhe apareceu com um sorriso espontâneo em seu consultório, enquanto seus pais, descabidos de alguma esperança quanto ao câncer da menina lamuriavam no peito do médico. Setia-se inútil, mais uma vez.
Estático observava os quatro filhos encostados na parede. A mulher segurava sua mão, uma mão decrépita que não lhe parecia mais sua. Tentava fixar o olhar em sua filha mais velha. Notou que a menina havia descolorido os cabelos pretos retintos para um loiro cintilante e assim fazia, porque os brancos já começavam a incomodar. Sentiria saudades da ousadia daquela menina.
Havia chegado a hora de partir. Um medo desconcertante e um alívio sem cabimento lhe tomava o peito e a mente. Esperava, agora no ápice de sua ansiedade, o momento certo da morte.
Sua filha mais velha aproximou-se e iniciou uma cantiga sob a voz doce e interrompida por soluços constantes e lágrimas rápidas. O senhor, em seu leito de morte, fazia jus ao choro esganiçado da viúva, ao canto sereno da filha e aos olhares vagos dos outros três herdeiros. Contorceu-se num gesto de Adeus e revirou os olhos que não mais voltaram a contemplar a filha mais velha. Tornaram-se estáticos e opacos, livres do prelúdio da morte.
Estático observava os quatro filhos encostados na parede. A mulher segurava sua mão, uma mão decrépita que não lhe parecia mais sua. Tentava fixar o olhar em sua filha mais velha. Notou que a menina havia descolorido os cabelos pretos retintos para um loiro cintilante e assim fazia, porque os brancos já começavam a incomodar. Sentiria saudades da ousadia daquela menina.
Havia chegado a hora de partir. Um medo desconcertante e um alívio sem cabimento lhe tomava o peito e a mente. Esperava, agora no ápice de sua ansiedade, o momento certo da morte.
Sua filha mais velha aproximou-se e iniciou uma cantiga sob a voz doce e interrompida por soluços constantes e lágrimas rápidas. O senhor, em seu leito de morte, fazia jus ao choro esganiçado da viúva, ao canto sereno da filha e aos olhares vagos dos outros três herdeiros. Contorceu-se num gesto de Adeus e revirou os olhos que não mais voltaram a contemplar a filha mais velha. Tornaram-se estáticos e opacos, livres do prelúdio da morte.
por Tainá Falcão