Silêncio
absoluto. Lá no fundo da sala escura, um
relógio antigo ecoava o tic-tac da angustia. Um barulho pontual penetrava a
casa quase muda. Os ponteiros tão exatos exigiam ordem, atenção à vida que
corria depressa lá fora, aqui dentro na penumbra sala. Uma nuvem forasteira,
carregada, passou devagar. Choveu. No canto da janela, um olhar distante.
Espiava pela fresta os pingos deslizarem lentamente sobre o vidro, até respingarem
sobre seus pés descalços. Era uma mulher. Os cabelos estavam soltos, caídos nos
ombros esguios, a silhueta desenhada, um vestido amarrotado, um rosto triste,
desatento, desnudo, limpo, livre. Os pés quase encharcados, mobilizados. Uma
mão que se erguia com maestria, charme, leveza até os lábios finos, pequenos,
lentos. Um de três, quatro, cinco cigarros gastos naquela noite. E o tic-tac do
relógio sádico ressoava sem pudor até a sala escura. Tic-tac, tic-tac, tic-tac
lhe dizia: seu tempo acabou, segue, abre a porta, corre até a rua. E vinha a
chuva maldita lhe implorar: fica, o mundo é frio, podre, distante, hipócrita,
desista. A chuva vai embora, ela pensa: está na hora! Vou seguir. O que se foi,
não volta, está longe, no canto do mundo, no horizonte do mar, na beira do
abismo, intocável, estilhaçado, sem conserto, no fundo da sala escura, no
tic-tac do relógio que diz: vai, segue, larga tudo, deixa de manha. Pés secos,
rosto molhado, em pranto, escapa até o centro da rua, onde há luz, movimento, música
no bar ao lado, gente, cores, barulho. Lá de baixo, ainda enxerga a sala na
penumbra, o tic-tac do relógio vai parando lentamente, até silenciar-se de vez.
Um rosto desfigurado, um vulto, uma sombra se aproxima da janela, puxa as
cortinas com rispidez. O fantasma volta. É uma mulher, lânguida, magra, cabelos
soltos, joga as cinzas do cigarro ao vento. Ela grita: segue, vai embora, o
tempo chegou. No centro da rua, cercada pelos holofotes, pela multidão, olhos
vermelhos, caminhando sem destino, sem pressa, canta baixinho, pede proteção,
coração destemido, pesado ainda, ouve a música tocar no bar ali perto e segue
até o centro da terra, beira do abismo, horizonte do mar, perto de Deus, casa
de oração, no colo do pai amoroso, na cama do antigo amor. Um lugar onde ela é
livre, sóbria, pura, onde o tic-tac vira música e o tempo passa devagar, pede
calma, paciência, um jeito manso para arrastar-se com a vida. Ela para no bar
vizinho, aumenta o volume da música sem pedir permissão. Sorri, gargalha, chora
como uma criança, sente-se liberta, pronta, inteira, cheia de si, viva, enfim.