segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O homem que despedaçou uma rosa

As janelas entreabertas permitiam que do quarto se ouvisse o amor acanhado dos pássaros. No banco da praça, a mãe ninava o filho pequeno e parecia lhe contar um segredo quando encostava os lábios ternamente no rosto da criança, beijando-lhe a face com cuidado. Na cama, os lençóis amarrotados testemunhavam o fervor da noite passada. Os lençóis que ontem se enrolaram entre pernas e abraços, agora, descansavam, calavam-se diante do choro tímido de Layla.
Ela vestia uma camiseta branca, aparentemente, grande para seu corpo miúdo que se encolhia na cadeira numa tentativa de sufocar a dor. Layla segurava um papel amassado em que as palavras já manchadas pelas lágrimas pareciam lhe esbofetear a cara. Sem os rodeios de um jovem inseguro, no bilhete, Valentim dizia que a noite havia sido maravilhosa, disse também, que adorava as pernas curtas da mulher enroscando sua cintura feito uma cobra. O homem confessou que, muitas vezes, no café da rua de baixo, onde se viram pela primeira vez, excitava-se apenas de sentir o perfume da mulher. Ele dizia que suas mãos eram objeto de desejo, tudo o que um homem poderia querer quando deslizavam em suas costas e - de supetão – os dedos cravavam as unhas na carne, nos músculos.
As cortinas voavam como que agoniadas com a tristeza daquela cena, tentavam chamar a atenção de Layla para a rua, para o amor dos pássaros, a mãe que ninava o filho, velhos de olhares de angustia, bêbados e famintos que assustavam madames de laquê no cabelo. Na noite anterior, Layla vestiu-se de vermelho. Deixou que os cabelos pesassem sob os ombros e treinou, durante todo o dia, o que deveria ser dito ao homem amado, após cinco anos de separação. Enquanto acendia as velas, pensava em como o tempo poderia ser inacreditável. Quando conheceu Valentim, Layla acreditou piamente ter encontrado o homem de sua vida. Quando os dedos longos do rapaz acariciavam seus cabelos e perdiam-se entre as mechas que se assanhavam, o corpo de Layla se excitava por inteiro. Ela respirava profundamente, como se agradecesse a Deus por lhe ter trazido a felicidade. Layla pensava em como eram infelizes as pessoas que nunca tiveram um grande amor, ou apenas naquelas que o deixaram escapar. Pensava naquilo com certo lamento e fazia o sinal da cruz, para que jamais perdesse Valentim de vista. Queria estar com aquele homem para o resto de seus dias.
Com os anos, até o cheiro excitante do perfume de Layla tornou-se um afronto. Valentim andou estranho por pelo menos dois meses antes do fim da relação. No desespero, a mulher ameaçava Valentim com palavras. Dizia que, se era a vontade dele, que então evitasse perdas maiores e fosse homem o suficiente para terminar com toda aquela cena. No entanto, instantes depois, como uma criança com um espinho cravado no dedo, berrava de dor. Pedia-lhes desculpas e dizia que era mesmo uma tola, que as palavras saíram em vão. Admitia estar desesperada, mostrava-lhe sua fraqueza, seu medo de perdê-lo. Valentim apenas a olhava. Com certa compaixão, Valentim encostava a cabeça de Layla em seu peito e esperava que a mulher adormecesse.

Em pouco tempo, tornaram-se estranhos na mesma casa. Layla já não mais lutava contra o desdém de Valentim, que quase não era mais visto em casa. Em uma manhã de domingo, Valentim juntou as poucas roupas que ainda restavam no armário e partiu. Quando voltou do trabalho, Layla desesperou-se com o vazio que encontrou. Trancou o guarda-roupa a chave, como que para preservar o cheiro do homem amado.
Cinco anos se passaram e os ex-amantes se encontraram-se no café da rua de baixo. Quase não se reconheceram. Ela estava com os cabelos longos e os lábios vivos, cobertos por um batom vermelho. Como um jovem de vinte e poucos anos, aquele homem de cabelos grisalhos, tremeu tanto que derrubou café quente nas calças. Layla percebeu o cheiro de Valentim. Sorria elegantemente para os senhores de mais idade que a cumprimentavam como a uma filha, mas, no fundo se arrepiavam com o decalque da silhueta da moça. Enquanto passeava os olhos entre os velhos, Layla encontrou Valentim acanhado no fundo do café. Aproximou-se, mas não teve coragem de cumprimentá-lo. Virou-se bruscamente e seguiu para fora da loja. Ele correu para alcançá-la, segurou-lhe na cintura e já perto dos lábios, susurrou seu nome: Lay...la. Nem mais um minuto, beijaram-se fervorosamente. Subiram as escadas do prédio de Layla e ainda que tentasse, Valentim não conseguia desgrudar as mãos do busto da mulher. Correram para o quarto, caíram na cama e fizeram amor até adormecerem. Antes de escrever-lhe o recado, Valentim pensou em ficar alguns dias a mais – pois no íntimo ainda sabia que estava enfeitiçado. Pensou em confessar-lhe que estava apaixonado, mas, que era casado e provavelmente, a esposa junto as duas filhas o esperavam ansiosamete em casa, onde preparavam seu doce preferido, como que para provar o quanto aquele homem era amado. Pensou, pensou, pensou. Tirou a caneta do bolso, apanhou um pedaço de papel rasgado e escreveu o que lhe deu na telha. Olhou-a da porta do quarto e pensou que foi um homem de sorte. Sem fraquejar, novamente, Valentim partiu.